Histórias
"Cozinhar é resistência." Ex-'Hell's Kitchen', chef brasileira no exterior fala sobre ambientes tóxicos em restaurantes
A chef brasileira Candida Batista: cozinhar como um ato de resistência. Divulgação
“No geral, considero cozinhar um ato de resistência”. Assim define a chef Cândida Batista sua dedicação, paixão e entrega à profissão. A brasileira que há anos atua no exterior, e que entre vivências já esteve na edição portuguesa do programa Hell’s Kitchen, em 2022, decidiu que era hora de contar o que viu, viveu e aprendeu no dia a dia de cozinhas de restaurante pelo mundo. Incluindo questões pesadas, como casos de assédio sexual e xenofobia, com as quais precisou lidar.
Cargas horárias exaustivas, as intermináveis horas em pé, a pressão por oferecer um serviço impecável mesmo imerso em um ambiente muitas vezes tóxico e até o abuso de álcool e substâncias ilícitas foram experiências enfrentadas pela brasileira. Que entende ser mais do que necessário falar sobre elas, para que da discussão sobre esses temas seja possível criar ambientes saudáveis para todas as pessoas que trabalham em um restaurante e que amam o que fazem.
É bem verdade que ambientes tóxicos não são privilégio dos restaurantes – eles estão em absolutamente (e infelizmente) todos os lugares. Mas como chef, Cândida viu e experimentou situações que entende serem suficientes para transformar os bastidores de um restaurante em algo insalubre e mentalmente perturbador, como o assédio sexual do qual afirma ter sido vítima, que a levou a processar o chef Ljubomir Stanisic, apresentador do reality em Portugal, e a empresa produtora do programa, e o "tinha que ser brasileira" que ouviu também naquele país. Por isso entende que, se manter na profissão, sobretudo fora do país, é também resistir. E faz isso ao acrescentar suas referências brasileiras nos pratos que prepara; assim, acredita mostrar quem realmente é, suas histórias e raízes.
Cândida já foi capa da revista Playboy, tem um canal no YouTube onde ensina receitas e mantém um perfil na plataforma Only Fans, de conteúdo adulto. Soma na bagagens trabalhos com o chef britânico (e polêmico) Gordon Ramsay, apresentador do Hell’s Kitchen, e com o chef austríaco Konstantin Fillipou, dono de um restaurante homônimo com duas estrelas Michelin em Viena.
Da capital austríaca, onde mora e trabalha atualmente, respondeu a perguntas do Bom Gourmet sobre o que viu e o que gostaria de não ver mais na parte de trás dos restaurantes, geralmente imperceptíveis para os clientes.
Do que já vivenciou nos restaurantes em que trabalhou em países distintos, consegue identificar um ou mais problemas relativos a um ambiente tóxico que são comuns em culturas diferentes?
A maioria do chefs fumam, e essa é a única coisa que garante um intervalo nos dias mais ocupados. Há o abuso de substancias ilícitas, álcool e uma glamourização das longas horas de trabalho. Estranho, mas parece ser uma cultura global! Chefes preferem uma pausa curta para cigarro do que uma refeição. No fim do dia, é parte da cultura que recebamos drinks enquanto limpamos e fazemos os pedidos e lista de preparo para o dia seguinte.
O que você viu que ilustra os problemas que esses expedientes muito longos causam em chefs e funcionários?
A exaustão física e mental afeta as relações pessoais, claro que a menor coisa pode contribuir para um grande drama dentro ou fora das cozinhas. Para mim, em um certo ponto foi difícil comparecer as apresentações escolares da minha filha e, por mais que houvesse um entendimento sobre a minha impossibilidade de estar lá, me gerava aquela dúvida, “será que estou fazendo o básico como mãe?” Vi chefs terminando relacionamentos devido à ausência e, para a maioria de nós, a falta de uma vida social afeta bastante.
Alguns reality shows sobre o dia a dia de restaurantes parecem valorizar a tensão nos ambientes de trabalho, nas cozinhas e entre membros das equipes. De que maneira você acha que esse tipo de programa ajuda a glamourizar esse tipo de relação tensa e prejudicial?
Tudo que gera drama, intriga e fofoca vende mais, como uma boa novela. Apesar de ser a realidade em ambientes com alta pressão, acho que normalizar esse relacionamento acaba sendo prejudicial. Há um movimento grande atualmente para que seja dada a devida atenção à saúde física e mental. Num ambiente como escritório fica muito mais fácil ter folgas extras ou até trabalhar de casa. Na cozinha, não há essa possibilidade. Mas agendar folgas, férias e evitar a sobrecarga é algo que chefes de cozinha podem e devem fazer por seus subordinados.
Ainda sobre a cultura tóxica em cozinhas e restaurantes, de pressão constante, você consegue entender de onde vem essa necessidade de alguns chefs ou proprietários de estabelecerem esse clima de tensão entre as equipes? Como mudar essa cultura?
Acho que a questão de ambientes tóxicos não se resume à cozinha. Escritórios são famosos por suas fofocas e acredito que isso seja da falta de maturidade emocional das pessoas envolvidas. Evitar a rotatividade de funcionários e oferecer um ambiente saudável acaba saindo mais barato a longo prazo, afinal o tempo que se investe treinando alguém novo com frequência significa custo e pode ser também um impacto na qualidade final do serviço.
Você sofreu um caso de assédio sexual durante sua participação no Hell's Kitchen de Portugal. Você já observou esse tipo de violência no dia a dia de outros restaurantes também (infelizmente os casos acontecem em qualquer ambiente de trabalho) e que orientações daria a mulheres que enfrentaram e ainda enfrentam chefes abusadores dentro de restaurantes?
Fica muito difícil pra mim apenas dizer “denunciem” porque existe uma grande dificuldade para as pessoas aceitarem esses fatos, e por vivermos ainda num ambiente em que mulheres são criadas para ser doces e submissas, não levantarem voz, e que faz parte da essência masculina agirem como agem. Além de coragem para falar sobre o assunto, é necessário contar com a possibilidade de retaliação, saber que haverá sempre alguém a defender o acusado e que a culpabilização da vítima existe em níveis assustadores. Num mundo ideal, eu não deveria estar aqui dizendo como podemos possivelmente nos proteger ou o que fazer depois do ocorrido, mas que homens sejam educados e responsabilizados por seus atos.
Como estrangeira, ao adicionar elementos da gastronomia brasileira nos meus pratos, não somente apresento um pouco de onde eu vim, mas também honro minhas raizes. Há uma beleza enorme por trás da história de cada prato tradicional
Você conta que também sofreu com xenofobia por ser brasileira fora do país. Por seu trabalho no exterior, isso tem sido uma rotina para você? Como você lidou com a questão? Você já observou casos semelhantes ao seu acontecerem com outros brasileiros em restaurantes nos países onde passou?
Apesar da minha passagem por Portugal ter sido apenas uma viagem sem intenções de morar no país, foi o único lugar onde me disseram para “voltar pra minha casa” ou “tinha que ser brasileira”. Existe sim nuances de preconceito em qualquer lugar, ao ir num escritório de serviços públicos, como receita federal ou ministério do trabalho. Algumas pessoas agem como se tivéssemos roubando oportunidades dos locais ou diminuindo o acesso dos cidadãos de benefícios sociais.
No geral, considero cozinhar um ato de resistência. Como estrangeira, ao adicionar elementos da gastronomia brasileira nos meus pratos não somente apresento um pouco de onde eu vim, mas também honro minhas raizes. Há uma beleza enorme por trás da história de cada prato tradicional e sua grande maioria foi criado por uma questão de sobrevivência e necessidade, como nossa feijoada ou apenas saudade como o “Arroz à Piamontese” que não existe no Piedmont, mas é um clássico italiano no Brasil.
Como chef, que atitudes você tomou com sua equipe para promover um ambiente mais saudável? Consegue citar exemplos de situações tóxicas que encontrou e que conseguiu reverter tornando-as positivas, ou encerrando-as de uma vez?
Eu evito as longas horas, mesmo para funcionários com contratos em que horas extras estão inclusas, mantenho escala partida com maiores intervalos de descanso, ou pausas, mesmo que curtas, ao longo de um dia de trabalho. Enfatizo sua importância dentro da equipe; incentivo a terem amigos ou família jantando conosco porque eles merecem se sentir orgulhoso por seu trabalho. Tento ao máximo agendar os dias de folga que coincidam com sua preferência ou compromissos da vida pessoal e não apenas impor o que cabe no calendário. Eu faço um quizz diário com fatos, técnicas ou histórias gastronômicas que, além de divertido, atiça a curiosidade de aprender mais porque estudos e desenvolvimento pessoal eu acho muito valido. E por fim, negociar a distribuição das gorjetas da maneira mais justa possível, afinal a gente não vive só de amor pela profissão.
Que dicas ou orientações você daria a chefs e restauranteurs para que consigam construir um ambiente saudável, de compreensão e diálogo nas equipes que lideram? E de que forma você entende que um ambiente saudável acaba refletindo no resultado final, na entrega da refeição ao cliente?
Apesar de olhar para cada pessoa individualmente, com suas próprias características, é importante entender que trabalho e relações pessoais devem ser duas coisas distintas. Por exemplo, não promover quem tem mais habilidade, mas sim a pessoa com que o encarregado da promoção tem mais afinidade, nunca favorece o grupo. Dividir conhecimento, incentivo aos estudo e tratar seus funcionários com respeito é fundamental. Acredito sim que o cliente percebe quando, nos bastidores, as coisas não vão bem. Se um garçom esquece de pedir um prato, a ideia é que seja preparado mais rápido possível, mas se há alguma desavença pessoal, as chances são [maiores] de que o cozinheiro coloque-o no final da lista, afinal não foi ele quem esqueceu.