Bom Gourmet
André Zampier: "Gostaria de ver as pessoas bebendo mate como bebem café ou refrigerante"
André Zampier é um costurador de tradições. A naturalidade com que fala dos múltiplos usos da erva-mate, detalhando formatos de cuia e copos, tipos de bomba, processos de beneficiamento, hábitos de consumo e características sensoriais é ímpar – o tipo de entusiasmo e eloquência que sempre estão associados ao brilho no olhar de quem encontrou seu assunto. Munido de informação, História e repertório ervateiro, André se denomina um "matte dreamer" e tem perseguido com diligência o sonho de ver a Ilex paraguariensis no consumo diário do curitibano, seja como chá, chimarrão ou drink.
É possível ver parte de sua visão materializada na Sapeco Matteria, aberta em outubro na Rua 24 Horas, uma loja que abriga um bar. "Basicamente tudo que um "mattero" iniciante precisa e tudo que um avançado deseja", definiu. Lá, é possível comprar erva a granel, provar clássicos como chá mate batido com limão e também combinações de infusões da erva verde ou amarela combinada à limão, leite, xaropes de fruta, melado ou ainda destilados e fermentados. "Eu gostaria de ver as pessoas bebendo mate com a mesma frequência e naturalidade com que andam com um copo de café ou uma lata de refrigerante", diz.
Faz 11 anos que André Zampier teve uma epifania. Ao vislumbrar a centralidade que a erva-mate tem na sua vida e na história do Paraná, a ideia espocou em sua mente: fazer um festival cultural em que o Paraná celebrasse a planta, com música, gastronomia, arte e História lado a lado. "Em 2013, veio a expressão Matte Cultural na minha cabeça e eu senti que falar de erva-mate era uma missão. A erva-mate conectava todas as histórias e me deu um senso de identidade", diz.
Curitibano com família de origem do Vale do Iguaçu, onde colhe-se o maior volume de erva-mate sombreada brasileira, André cresceu acostumado a tomar chá mate batido e chimarrão "lavado" – sua memória mais antiga é de ter entre 6 e 7 anos e infusionar seu mate com a erva fraca na cuia, e a água quase morna na chaleira da avó materna. Tanto a família materna quanto paterna tem uma ligação com a produção de erva-mate – da parte do pai, os irmãos herdaram um erval em São Mateus do Sul e da parte da mãe, sabe-se que a família migrou do Rio Grande do Sul para a região na década de 1920, sofrendo com a crise logo depois.
Matte Cultural, o início da missão
Em 2013, André trabalhava com marketing promocional e produção de eventos, depois de uma tentativa de viver como músico independente. Já havia estudado sobre leis de incentivo fiscal, modelos de projetos culturais e trazia sua experiência em realização de shows e festivais culturais. Passou três anos maturando o conceito e o formato do Matte Cultural. Em 2016, bateu à porta da Fundação Cultural de Cultura de Curitiba no primeiro dia útil do ano para agendar data e horário.
O primeiro Matte Cultural foi realizado de forma independente nos dias 9 e 10 de julho no Memorial de Curitiba: no térreo, uma área para tomar chimarrão, shows com seis bandas locais, uma feira com gastronomia, marcas de roupa, cosméticos e acessórios curitibanos; no mezanino, uma exposição com fotos, artefatos e objetos históricos, devidamente contextualizados. Nos dois dias, mais de 5 mil pessoas passaram pelo evento. O festival terminou com André vendendo o carro para quitar o resto da dívida contraída. "Foi pesado. E eu sabia que a próxima edição deveria ser maior e melhor. Sinto que entrei numa operação missionária e missioneira", diz. Se antes do evento muita gente olhou desconfiado para a proposta, a energia e vigor que André colocou em suas propostas têm transformado os olhares ao redor desde então.
André realizou a segunda edição do Matte Cultural entre 2020 e 2022 pelo Profice, com uma mostra itinerante que passou por quatro cidades paranaenses cujas histórias pagam tributo à erva: São Mateus do Sul, pelo volume de produção; Antonina e Rio Negro, pelo escoamento via portos; e Curitiba pelo beneficiamento fabril e concentração de riquezas com os barões da erva-mate. Em 2022, o projeto encerrou com um novo formato: uma websérie gravada durante um talk show ao vivo, ao longo de dois dias, no Teatro da CEPE, em São Mateus do Sul.
Rodas de mate a todo vapor
O "sonhador da erva-mate" tem encabeçado inúmeras iniciativas para criar uma cultura urbana de consumo da planta, para além (mas sempre junto) do chimarrão. Em 2017, criou a Matte N' Roll junto com seu irmão João Carlos, agrônomo, uma marca que traz em seu portfólio ervas com diferentes granulometria e perfis de secagem e tostagem. As collabs floresceram nessa época: foram lançados produtos como cerveja, chocolate, pão, drinks e pratos em restaurantes usando a erva-mate da marca.
Com a Matte N' Roll, André e João levaram uma oficina de preparo de chimarrão e outras bebidas com mate para festivais culturais e começaram a promover rodas de chimarrão em espaços públicos, como praças, e comerciais, como o Coletivo Alimentar, a Casa 102 e shoppings centers.
Em 2018, André e Luiz Mileck, idealizador do Coletivo Alimentar, apresentaram a proposta da Semana Barão do Serro Azul à Câmara Municipal de Curitiba, que virou a lei 15.687, sancionada em 2020 – há três anos, espaços culturais receberam identificações que contam sobre o papel de Ildefonso Pereira Correia na economia paranaense e na negociação e resistência ao cerco dos maragatos durante a Revolução Federalista, no final do século 19. A data de nascimento do barão também virou data comemorativa sob a lei municipal 16162/2023: André sugeriu à Câmara, que já tramitava um projeto de lei municipal para instituir o Dia da Erva-Mate, que a data escolhida fosse 29 de agosto.
As rodas de mate seguem a todo vapor: em 2023, André passou a promovê-las no primeiro domingo do mês ao lado do palácio Belvedere, no Largo da Ordem. Basta chegar entre 10h e 13h com o sua cuia e bomba. Muita gente aprendeu a preparar seu próprio chimarrão ao se deparar com André e um pequeno séquito "mateando" nestes lugares.
Conveniência e naturalidade
André também preparou sua primeira cuia já na vida adulta, aos 18 anos – eram os anos 1990, e não havia tutorial online: o passo a passo vinha da observação e habilidade do novato em reproduzir os gestos a partir de lembranças. "A dificuldade de montar com a erva fina, a bomba entupindo… foi muito frustrante, a ponto de eu desistir de montar sozinho por um tempo. Foi então que comecei a procurar ervas com moagens mais grossas", relembra André. Até então, sempre havia alguém preparando o mate e começando o dia. "Era mais conveniente e prático do que fazer café", explica, "e era fácil de repartir".
Essa conveniência é o que ele procura repetir em suas empreitadas. A primeira matteria aberta por Zampier foi em 2018, no Coletivo Alimentar, hub de iniciativas gastronômicas que funcionou por três anos no centro de Curitiba. A Matte N' Roll Matteria levava o mesmo nome da marca de erva lançada um ano antes e, pela primeira vez nos cardápios, era possível escolher blends de erva para preparar um chimarrão. Também havia cerveja feita com erva-mate, drinks alcoólicos e não-alcoólicos com licores, infusões e xaropes de erva-mate, chá mate tostado de marcas locais e produtos e acessórios, como cuias, bombas e marcas de ervas do Paraná.
Houve críticas. Comentários nas redes sociais condenaram a falta de "gauchismo" e o consumo comercializado do chimarrão, tradicionalmente compartilhado entre amigos e família, sem cobranças. André não se abalou. Sabia que, para ampliar o consumo da Ilex, teria que conciliar tradição – à qual ele também é afeito – com uma nova visão sobre os derivados da planta. O Coletivo Alimentar fechou alguns meses depois da matteria inaugurar, mas a semente estava plantada.
Ali, André começava a dar forma à segunda onda de consumo, que ele prefere chamar de "nova onda", sem o número ordinal. "A erva-mate é histórica e de origem guarani. Tem diferentes culturas ligadas a ela e formas de consumo e de rituais que não cabe a nós organizar em uma, duas, três ondas", defende. Mas, se for considerado o comportamento do consumidor no século 20, a proposta se assemelha à segunda onda do café, em que as cafeterias criavam bebidas com café, incluindo outros ingredientes, a partir da década de 1960, e com isso aumentaram a cultura e seu consumo.
Com a inauguração da Sapeco Matteria, André e seu irmão lançaram outra marca de erva-mate: a Manos e Hermanos. O nome, que sempre foi a razão social da Matte Cultural, agora aparece em embalagens clean com informações técnicas sobre o produtor, tipo de folha, granulometria e secagem. "É uma versão mais sóbria que o Matte N' Roll, que tem uma pegada mais lifestyle e descontraída. As duas são com beneficiamento à cigana, fazemos secagem com indústrias e fábricas parceiras", explica.
As marcas de André e João Carlos são apenas duas das dezenas de rótulos de erva-mate na Sapeco. Em pouco mais de dois meses, a matteria vive cheia: quem passa pela Rua 24 Horas no dia a dia sempre acaba parando para um dedo de prosa; moradores vizinhos vão regularmente ao balcão conversar sobre novidades e noticiário; funcionários de escritórios próximos aproveitam as pausas para tomar um mate gelado ou um Jacaré do Barigui; apreciadores da erva passaram a comprar a granel e experimentar mais; novatos receberam suas primeiras lições e turistas levam latas personalizadas, erva e equipamentos como souvenir. Ao que parece, André arrematou a costura de uma nova tradição na cidade.
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