A Xepa, com André Bezerra e convidados

A Xepa, com André Bezerra e convidados

Vozes

Televisão de Cachorro

14/03/2025 19:23
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Por André Bezerra
Um texto sobre a bicicleta, guardanapos de pano, os sotaques de Curitiba, fogo de chão e frango assado
Alguém uma vez me disse: “você é o vira-latas da gastronomia.” Embora surpreendido pela comparação, gostei. Quanto mais desenhava paralelos na minha imaginação, mais coincidências eu encontrava. Assim como um cachorro vira-latas, passo os dias correndo de um lado a outro. Tanto que praticamente abandonei o hábito de usar carro. É a bicicleta que me leva para onde preciso ir com a versatilidade ideal para eu conhecer novas ruas, trajetos, passar na frente de lugares que eu normalmente não passaria e, até, para me poupar de ficar buscando vaga de estacionamento. Sendo assim, as duas rodas da magrela estão, para mim, como as duas patas que eu carecia.
E as coincidências vão além: é claro que eu gosto de um bom restaurante onde serei recebido por um maître ou garçom que puxarão a cadeira para eu me sentar. É gratificante ser saudado por um time uniformizado com elegância. Quem não gosta de ser paparicado de vez em quando? À mesa, taças de cristal e pratos de louça sobre uma toalha branca como o lençol novo que aguarda o bebê por ser dado à luz.  À esquerda do prato imaculado, o guardanapo de pano e os garfos. À direita, facas e colheres. Todos reluzentes, a colher de sopa poderia servir de espelho para uma mulher conferir o batom dela.
Vou mais longe, faz bem pro meu ego cada vez que ouço alguém me endereçar “seja bem-vindo, Seu André, o chef logo virá falar com o senhor.” Que ricas palavras, quanta consideração e privilégio poder passar uns momentos da minha refeição conversando, às vezes até bebendo um vinho com o chef. E, então, o sommelier da Casa com suas histórias interessantes, às vezes até mirabolantes, sobre terroir, uvas impressionantes, países distantes, clima, mineralidade do ar, proximidade com o mar, poda, manejo, maturação. Para cada etapa, inúmeras pequenas histórias bem contadas, sem as quais o conteúdo daquela garrafa seria somente um líquido mais ou menos turvo, de aroma peculiar, mas sem contexto, sem buquê.
A vida em torno da mesa, acredite, pode ser encantadora ou sem graça. Depende dos comensais ao redor dela, da capacidade de cada um de fazer relações, de ouvir e de contar histórias. É neste contexto que os pratos surgem e pousam diante das pessoas. Os aromas praticamente se materializam junto com a apresentação, a refeição é o ato principal contido numa experiência muito mais vasta, profunda e sensorial.
Pois muito bem. Escrito isso, preciso passar para o vira-latas do início deste apanhado, o ser-humano de rua, meio caramelo, que aprecia ganhar a vida girando sobre duas rodas de uma bicicleta alaranjada, mesma cor dos táxis de Curitiba. Se babo diante de uma mesa bem posta, o meu rabo abana mesmo é para uma televisão de cachorro com aqueles frangos girando e dourando, desprendendo um aroma único para a rua inteira. Eu e os cachorros somos seres com o olfato extremamente aguçado, talvez por isso eu goste tanto do aroma de um bom assado. Sinto a espinha empertigar cada vez que um dono de boteco, mercadinho ou padaria abre a tampa de um barril de latão e dou de cara com aquelas peças de costela bovina, suína, copa-lombo e cupim derretendo sobre a brasa.
televisão de cachorro
Sou capaz de rolar diante de um fogo de chão. Fico sobre duas patas se o mestre-churrasqueiro me atirar uma lasca de matambre, lançar um pedaço de torresmo na minha direção. Se o porquinho estiver bem pururucado, juro que eu uivaria para uma noite sem lua, para o céu negro como um bloco de carvão esperando para ser incendiado. Nestes estabelecimentos, quero ver o dono. Ele é o chef, gerente, garçom, maître e sommelier, tudo junto. Ao ser instigado, vai confessar que foi o engenheiro e arquiteto de cada cantinho daquela Casa majestosa na simplicidade dela. Saberá, sem colar da caderneta ou do celular, o nome de cada cliente, parceiro e vendedor.
A mesa dificilmente vai prescindir de toalha, quem sabe nem haverá mesa. Diferente da távola tradicional, em uma hora passam muito mais pessoas para comer e beber do que uma mesa comportaria em uma semana inteira. Os assuntos vão do futebol ao casamento, da escola dos filhos à última invenção culinária dentro de casa. Sobre a mesa tipo bistrô, os copos são de vidro em tantos formatos e tamanhos diferentes que é impossível nomeá-los. Em volta dos pratos, os talheres desconhecem etiqueta ou formação, normalmente chegam sobre a própria louça, enrolados num guardanapo de papel.
Curitiba tem mais esta peculiaridade admirável: cada bairro tem seu próprio sotaque, seu sistema, sua cultura e reunião de hábitos. De bicicleta, cruzo do Pinheirinho à Barreirinha em menos de duas horas. Cruzo o Capão Raso, o Portão, Água Verde, Centro, Cristo Rei, Alto da XV, da Glória, Hugo Lange, costuro entre o Cabral, Juvevê, Abranches e Bacacheri, onde antigamente era uma fazenda e havia uma vaca chamada Chery. Curitiba tem sotaques no jeito de falar, não poderia ser diferente na hora de cozinhar. Nossos pratos são carregados de segredos de família, de especiarias e de modos de fazer.
Televisão de cachorro
O jeito do Carlos Fogo atear é diferente de como o Fábio Cruz acende. O fogo de chão do Andrews de Souza arde de outro jeito se comparar com o do Douglas Pulpero. Ademir, Manu, Montejorge, cada um defuma à sua própria maneira. Em comum: sabem tudo e mais um pouco, além de serem criaturas extraordinárias. A mesa em volta do fogo normalmente terá manchas de gordura, desenhos a faca e marcas de brasa sobre ela, como tatuagens. Pode ser que uma ponta esteja queimada, a outra meio comida. Os pratos podem dar lugar às tábuas, toalhas de mão poderão fazer as vezes do guardanapo. Eis a Festa da Gastronomia. Nada é estático, tudo celebra, comemora, enaltece o sabor, festeja a companhia, o bem-estar.
Comer em casa é bom, pode ser uma experiência incrível, tudo é possível. Comer na rua, porém, é diferente. Nunca fui cachorro de apartamento. Você pode até me encontrar roendo alguma coisa sobre um tapete chique, um mármore importado, sou a favor da experiência, seja como for. Mas eu sempre vou dormir embaixo de um balcão, sobre um capacho bem judiado, abanarei meu rabo para um petisco ou diante de uma televisão de cachorro, o frango dourando enquanto escorre em cima das batatas coradas de gordura e calor.