A Xepa, com André Bezerra e convidados
Vozes
A cura
André Bezerra
A gente não tinha dinheiro, não tínhamos quase nada. Trabalhávamos num restaurante onde eu cozinhava e você lavava. Sobre as mesas no salão, as toalhas eram de papel, fui ver meu primeiro guardanapo de pano muitos anos depois. Enquanto eu preparava as bases para as receitas, você cantarolava. Depois, lavava as primeiras panelas enquanto eu reduzia, puxava, fervia e fritava. Não me lembro bem o ano, mas era época de natal. A nossa cidade era grande. Mesmo assim, aparentemente cada um sabia um pouco sobre a vida de todo mundo. Em dezembro, parecia que tinha um papai noel para cada família rica. O bom velhinho aparecia nos shoppings, nos mercados, nas lojas de rua, nos parques e em hospitais. Rico recebe a visita do papai noel até na doença. É diferente com os pobres. A gente precisa orar muito e ter fé na piedade de Deus diretamente. Papai noel só visita os endinheirados e, mesmo assim, é uma vez ao ano. Deus é para todo dia, para todo mundo.
A nós, naquela cozinha de fogão e forno a gas, restavam as carnes vermelhas, frango, galinha, peixes e o porquinho. Também lidávamos com músculo e miúdos. Vivíamos entre ervas, pimentas, legumes, verduras e raízes. Você calçava umas sandálias velhas, mas aquilo não era nada revelador. Alguém que observasse melhor, veria além. A minha avó costumava contar uma história que o planeta terra era a noiva do sol. Somente quem viajasse até o espaço sideral, como um astronauta, seria capaz de enxergar o véu. Aqui embaixo, era o nosso olhar que envolvia tudo. O nosso jeito de olhar as coisas poderia vesti-las ou despi-las. Eu era muito menino e não entendia. Homem feito e mirando os seus pés, lembrei da história. Eles chamaram a minha atenção antes mesmo da sua melodia, do seu jeito de cantar baixinho, bem afinada, como se “desse canja”. Apesar do Roberto, você preferia cantoras mulheres. Eu te vi chorando a morte da Gal, ficando muito triste com a partida da Rita, ensaiando a canção nova da Marisa.
Na cozinha, não conversávamos quase nada. No caminho pra casa, eu desviava alguns quarteirões e cruzava uma rodovia para te acompanhar, garantir que você chegaria bem. Morávamos em bairros diferentes, embora vizinhos. No meu bairro tinha mais botecos. No teu, mais violência. Fazíamos todo o trajeto em silêncio e o teu gato sempre te recebia miando, com sono ou faminto.
No natal daquele ano você ficou doente. Falaram numa bactéria, algo simples mas potencialmente perigoso. Me disseram que você teve que ser internada, que conseguiu dar entrada num pronto-socorro e por lá ficou. A preocupação intensificou a minha vontade de te dar um presente. Eu não tinha dinheiro, mas o natal é muito mais do que isso, é sobre os pequenos milagres. Descasquei batatas, amassei alho, pimenta, piquei cebola. Cortei um tanto de couve e reservei na água fria. Cozinhei inhame, batata salsa, aipim. Escolhi as folhas de louro, moí um pouco de gengibre, separei um punhado de ervas frescas, apanhadas na horta. Limpei bem o músculo, coloquei sal, limão, economizei na pimenta moída e deixei descansar de um dia para outro. Escrevi tudo sobre um caderninho, junto com outras receitas e canções, a mão, “de próprio punho”.
Foi o meu amigo, Ozeias, quem emprestou a fantasia de papai noel e arranjou o transporte. A Andrea, moça da revista que almoçava quase todo dia no restaurante, olhou as receitas, corrigiu meu português, embalou o caderninho com celofane e laço de fita vermelha. Também convocou os amigos dela para ajudarem com as panelas e as “quentinhas”. E no dia 25 de dezembro daquele ano, me vesti de papai noel e, literalmente, desembarcamos no posto de saúde onde você estava. Éramos umas vinte pessoas, muitos litros de sopa de músculo, além de brinquedos novos e livros em bom estado, tudo fruto de doação. Por algumas horas, um postinho inteiro celebrou o nascimento do menino Jesus durante um almoço de natal. Você estava magrinha, fraca e desidratada quando fiquei ao seu lado, te dando sopa. Semanas depois, você me contou que foi ela que te curou.
Até hoje, segue preparando a receita que foi criada para você, inclusive nos restaurantes mais célebres mundo afora. Revelou, em muitas entrevistas para canais em diversas línguas diferentes, que o caderninho foi o seu primeiro presente de natal, que a receita da Sopa de Músculo foi a primeira que preparou, que é a sua receita.