
André Bezerra*
A Xepa
Uma Senhora Feijoada: reflexões sobre o destino das coisas

Da orelha ao pé, a feijoada completa mostra que aproveitar cada parte do porco é um gesto de respeito à vida - e à própria refeição. Crédito: Luiz Rocha/Bigstock.
Na minha classificação pessoal, há três tipos de feijoada: o feijão ralo, a Feijoada e a Senhora Feijoada. Esta última tem uma característica oposta ao pão francês e ao pastel, que são muito melhores quando feitos na hora. A Senhora Feijoada precisa de tempo. Enquanto dorme, seus sabores se intensificam, o caldo engrossa. Uma Senhora Feijoada não deveria dispensar o colágeno das partes do porco que são ditas menos nobres: rabo, focinho, pé e orelha.
Uma vez eu li que toda refeição começa numa morte. Foi num livro de fotografias do Nuno Papp. Este raciocínio nunca mais me abandonou. Por causa dele, detesto desperdício de comida em qualquer etapa. Seja na sua preparação ou no momento de consumi-la. Por isso, ao ver que um lugar oferece a tal “feijoada magra”, meu primeiro pensamento é “para onde foi o resto do porquinho?” O que foi feito das orelhas pontiagudas, das pés, do rabicó de espiral e do nariz de tomada? Se o bicho foi abatido em nome da minha refeição, eu não abro mão de rogar que dele seja feito o melhor proveito.
E o frango, que a minha mãe só come o peito? Cresci ouvindo ela dizer que só gosta de carne branca. E eu, moleque, só gostava da coxa. O ser humano é uma raça peculiar à mesa. Começando pela própria mesa. Todos os outros animais carnívoros prescindem de mesa, cadeiras e talheres na hora de matarem a fome. E quando matam para comer, normalmente devoram tudo, sem distinção. Da carne aos miúdos, nada fica de fora. Não raro, bebem o sangue, chupam o tutano e roem os ossos.
Quanto a nós, humanos, é impressionante como nos distanciamos da essência. Na gana de transformar, pasteurizar e industrializar, muitas vezes tem sido difícil reconhecer o que é, realmente, aquele alimento que estamos consumindo. Se é que poderia ser chamado de alimento. Na era dos multiprocessados, as novas doenças são sinal flagrante de que caminhamos para um precipício.
A minha mãe, mesmo só gostando do peito, preparava todas as partes do frango: colocava numa travessa com cebolas e tomates partidos ao meio e punha no forno para assar. O frango à espanhola dela solta um aroma que faria um galo cacarejar fora de hora. No sítio é assim: o mesmo galo que te desperta por anos é a ave que vai pra panela.
Toda refeição começa numa morte. O porquinho gracioso e cor-de-rosa de hoje pode ser o torresmo pururuca de amanhã. A fruta que brota da árvore é a mesma que vira suco ou geleia. Das flores e raízes, chás e remédios. Da madeira, o fogo, o cabo da faca, a mesa e as cadeiras em volta. Tudo haverá de ser aproveitado, é uma questão de respeito - e o fim justifica os meios. O que não deveria poder era o ser humano abater um elefante para utilizar o marfim, pescar um tubarão para comer a barbatana, matar uma cabra para fazer cashmere ou arrancar a pele do jacaré para fabricar botas.
Isso me leva ao princípio destas reflexões. Não há problema oferecer a tal da feijoada magra, desde que tenha sido dado bom destino às partes “menos nobres” do animal sacrificado. É uma questão de conexão com o todo e com o que é divino. Assim na terra, como no céu.