A Xepa, com André Bezerra e convidados
A Xepa
Um Panegírico da Canja
Se de fato a sopa é alimento dos vates, ouso afirmar que a canja de galinha seria o decassílabo heroico, o verso perfeito. Bigstock
Por Sandro Moser
Quando é caso de usar comida como inspiração para versos, muitos bons poetas escolhem falar de sopas. Minha mãe sabia-os na ponta da língua e costumava listar, rimando, as qualidades dos caldos que preparava. “Sete virtudes tem a sopa: tira a fome, dá sede pouca, faz dormir, é de fácil digerir, nunca enfada, sempre agrada e põe a cara corada”, dizia, citando o poeta Castillo de Lucas.
Há casos e mais casos. O também luso Fialho d’Almeida, outro versador culinário, disse: “Sopa substância, panaceia para as fraquezas de toda espécie…”. Eça de Querioz falou muito de caldose afins. Essa recorrência temática sempre me fez parecer que sopa fosse comida de poetas. Mesmoporque digestão lenta e poesia não cabem no mesmo corpo.
Assim, se de fato a sopa é alimento dos vates, ouso afirmar que a canja de galinha seria o decassílabo heroico, o verso perfeito. A comida fundamental da civilização, pois concilia a poesia – que é inutensílio – a tantas virtudes práticas quesó me resta aqui fazer-lhe um breve panegírico à luz da história social, ainda que com a profundidade de um prato de sopa.
A história da canja remonta às grandes navegações dos século 15 e 16. Trata-se, pois, de tradição que herdamos dos portugueses, como a sífilis e uma certa dosagem de lirismo. No melhor livro já escrito sobre comida no Brasil, Receituário de Cozinha (Ed. do Autor, 2012), Marcelo Weber Macedo a define como um dos “sete castelos da bandeira gastronômica de Portugal, o castelo de Goa, na Costa de Malabar”.
Pois, especula o autor com bons métodos, que a sopa de arroz foi um uso adquirido no Ceilão, ao que os lusos, espertos que só eles, melhoraram muito ao colocarem o cereal a ferver não em água, mas no caldo de uma gorda ave. Penso que foi neste momento que a sabedoria popular criou o brocardo “galinha gorda não precisa de tempero”.
Também poeta, Weber explica por que a galinha reina na cozinha, por que “estimula, encoraja e produz vontades, é esurina (suculenta) e faz ganhar peso sem fazer perder a inteligência”.
Uma receita simples
A esta altura, penso, cumpre estabelecer limites quanto a receita da canja. Nada poderia ser mais simples: arroz e caldo de galinha. No máximo, uns pedaços desossados do frango e alguns dos seus miúdos. Tudo além disso pode ser muito bom, mas vira outra coisa, algo como uma caldeirada de frango com legumes.
Sobre ela há outro célebre provérbio ultramarino: "canja de galinha e bom senso não fazem mal", que o gênio Jorge Ben Jor transformou em refrão. Acho que todos concordamos com a premissa, mas no campo da culinária convém sempre uma ressalva. No bom senso até se pode exagerar, mas quanto a canja é preciso segurar as rédeas da voracidade, pois já vi muita gente boa inescada em seu sabor revigorante, escorregar aos estragos da gula.
Sobre ela há outro célebre provérbio ultramarino: "canja de galinha e bom senso não fazem mal", que o gênio Jorge Ben Jor transformou em refrão. Acho que todos concordamos com a premissa, mas no campo da culinária convém sempre uma ressalva. No bom senso até se pode exagerar, mas quanto a canja é preciso segurar as rédeas da voracidade, pois já vi muita gente boa inescada em seu sabor revigorante, escorregar aos estragos da gula.
Em um de seus poemas, nosso Paulo Leminski dizia querer ser um meditativo poeta maldito queimado pelo hálito das multidões, mas, lamentava que só lhe sobrara a tarefa de engrossar uma sopa que mal daria para dois. Pois canja não era a sopa rala do poeta. Se fosse, era possível que ele até convidasse um terceiro comensal, visto que a panela de canja é experiência gregária e bonita por natureza.
Ele, como eu, escrevia de Curitiba, sob o signo da memória ancestral das casas com galinheiro, um tempo em que a cidade era alegre como um rio e havia galos, noites e quintais. Por aqui, a função social da canja é das mais diversas.
Ele, como eu, escrevia de Curitiba, sob o signo da memória ancestral das casas com galinheiro, um tempo em que a cidade era alegre como um rio e havia galos, noites e quintais. Por aqui, a função social da canja é das mais diversas.
Ela é o carro-chefe do menu da mais amada casa suspeita da cidade. E o que seria o famoso “risoto molhado” do restaurante Cascatinha - origem da lenda de Santa Felicidade - senão uma boa e velha canja?
Nos corredores de nossos hospitais, enfermeiras sorridentes empurram carrinhos cheios de potes de canja para reanimar os enfermos. Poeta do povo, Adoniran Barbosa, foi paciente numa situação dessas e definiu o lance: “Pobre quando come galinha, um dos dois está doente”.
O sistema penitenciário a distribui aos custodiados mais de uma vez na semana, as escolas municipais fazem o mesmo com seus “detentos”. É também atrás dela que, em manhãs frias, se formam filas de pessoas em situação vulnerável em busca do afago quente de um copo de canja. Em muitos casos, a única refeição do dia e disso todos devemos nos envergonhar.
Por ter unido o ocidente ao oriente. Por ter salvado mais vidas que a penicilina e a vacina Sabin. Por ser barata e fácil de preparar para si ou para um batalhão inteiro de poetas ou sambistas, mas não só por isso, afirmo que a canja de galinha é o ponto alto desta cordilheira de muitos picos que é a arte de cozinhar.