André Bezerra*

A Xepa

O supermercado: um futuro entre gôndolas e memórias

27/06/2025 11:20
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Pra quem passou a vida colhendo fruta direto do pé e legumes direto da horta, um supermercado pode ser uma experiência "estranha". Crédito: dotshock.

Sentiu uma espécie de choque na primeira vez que viu os ovos de galinha no supermercado. Estava habituado com a granja, por isso ovos organizados em bandejas de doze ou trinta unidades, todos em pé, pareceu-lhe uma visão meio apocalíptica. Havia os brancos numa pilha, os amarelos estavam em outra. As pessoas da cidade realmente gostavam de organização dentro dos mercados, diferente da cacofonia ruidosa dos carros e do emaranhado de ruas, avenidas e esquinas para o lado de fora.
Havia uma placa flutuando sobre o setor e nela se lia “Hortifruti”. Também lhe pareceu estranho aquela horta suspensa sobre gôndolas e tabuleiros. As cenouras desenterradas e limpas, deitadas lado a lado às centenas, pequenos corpos estirados como mártires da terra onde - um dia - haviam brotado.
Enormes cestos acomodavam mimosas, outros continham laranjas. Mais adiante, abacates, mangas, tomate, cebola, batatas. Os cachos de uva eram oferecidos em bandejas e os de banana, pendurados numa espécie de varal, suspensos por ganchos, a casca num amarelo mais pálido, menos vibrante, como se soubessem que estavam longe do pé e a vida ia por um fio.
Surpreendeu-se diante da beleza artificial daqueles arranjos, fechou os olhos e deixou que o aroma das goiabas o transportasse de volta para a roça. Pegou uma ou outra nas mãos, era a primeira vez que não as colhia do pé, que não pisoteava as mais maduras caídas pelo chão do pomar. Não havia bichos naquelas goiabas e as maçãs e limões eram tão perfeitos que nem pareciam de verdade. Diante de uma espécie de geladeira, esticou o braço e apanhou uma bandeja: “sopa mix”, que trazia, bem embalados, pequenos cubos de abobrinha, chuchu, cenoura, batata, vagem e abóbora cabotiã.
As pessoas na cidade não tinham tempo para plantar, ou colher. Não se interessavam pela roça e não compreendiam os desafios de criar bandos ou rebanhos, de ordenhar, tratar ou, até, abater um animal. Com o tempo ele aprenderia, melancolicamente, que na metrópole os passarinhos não voam em bandos e nem fazem alvoroço. O sol nasce e se põe por trás das construções, o horizonte dá lugar aos edifícios. Pouca gente se importa com a dança das estações, quase ninguém sabe quando começa a época dos morangos ou termina a do caqui. Não é comum encontrar quem já tenha mergulhado num rio ou tomado banho de cachoeira.
Fazia três dias que chegara à cidade para trabalhar no supermercado, tentar estudar, adquirir uma formação e mandar algum dinheiro para a família, no campo. Os pais e irmãos haviam ficado por lá, agarrados como trepadeiras que abraçam as vigas na varanda, envolvem as cercas, se atiram sobre os balcões.
Com o passar dos anos, a fuligem da cidade pousaria sobre suas roupas, envolveria o seu corpo, influenciando cada decisão e tomando conta de boa parte dos pensamentos. Trocaria de emprego, faria uns poucos amigos, atenuaria a timidez e o modo matuto de lidar com as pessoas. Conheceria alguém que passaria a amar. Seria alguém da cidade, mas se casariam no campo, tendo a mãe natureza, a família e velhos amigos por testemunha.
O barulho do vento atravessando o pomar e um sino tocando embaixo do sol seriam o prenúncio de uma união sólida e perene. Viriam os filhos que estudariam e se formariam profissionais. Um deles faria o caminho de volta para o sítio, onde passaria a viver com um pé lá e o outro na cidade grande.