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Acelga: reflexões sobre verduras, sardinhas e a perenidade dos sentimentos
Por André Bezerra
“Você é perecível ao tempo”, foi o que Ela disse enquanto me apontava o indicador como se fosse uma colher de pau. Estávamos na cozinha da minha casa. Eu sei que todos nós somos perecíveis, naturalmente. Aprendemos no colégio que o ser humano nasce, cresce, se multiplica e morre. A partir do momento quando nascemos, é certo que passamos a perecer, nossa espécie não foi feita para durar pra sempre, temos prazo de validade. Mas não era a mim, especificamente, que Ela se referia, mas ao meu sentimento por Ela, ao nosso relacionamento. Sei disso porque estávamos em meio a uma DR, ou discutindo a nossa relação. Então Ela concluiu, por inúmeros motivos dela, que o sentimento que eu nutria por ela era perecível.
Pensando bem, acho que eu preferia ter sido chamado de pilantra, indeciso, até mesmo covarde ou qualquer coisa nessa linha, mesmo que fosse mais pesado. Mas dizer que eu era perecível ao tempo foi inesperado, aquilo ficou na minha cabeça. Entusiasta da gastronomia que sou, do tipo que pensa em comida da hora que acordo até quando vou dormir, minha reação mais instintiva foi buscar, mentalmente, uma referência sobre até onde Ela queria chegar.
Fiquei pensando se eu era perecível como uma sardinha fresca, ou como uma rúcula. Isso seria ainda mais terrível, se levado em consideração que uma sardinha fresca e uma rúcula não duram uma semana, mesmo na geladeira. Passados dois ou três dias, já começam a fazer cheiro, a darem sinal de que o destino delas é o lixo. A rúcula começa a ficar amarela, débil, parece que dá para ver a vida saindo dela, a verdura deixando de ser verde. A sardinha, não gosto nem de pensar. O que um dia foi um peixe prateado a nadar em grandes cardumes, vai se convertendo numa matéria inerte, solitária, pastosa e malcheirosa. Para não chegarem ao estado de putrefação, tanto a rúcula quanto a sardinha precisam ser devidamente acondicionadas, congeladas ou consumidas quase que imediatamente.
Eu não sou perecível ao tempo como uma rúcula, muito menos o meu sentimento é uma sardinha, isso não seria crível. Então compreendi que a minha relação com Ela poderia sim estar exaurindo de alguma forma. Se Ela já estava ouvindo o tique-taque rumo ao gongo final do relógio, então eu também precisava enxergar, seguramente a engrenagem estava chiando em algum lugar.
Por outro lado, olhando com pragmatismo para a situação, concluí que - quem sabe - eu fosse mesmo perecível. Entretanto, convenhamos, tão perecível quanto uma acelga. Quem é dono-de-casa ou mora sozinho precisa saber que uma acelga, bem acondicionada, é capaz de durar longas semanas. Mesmo passado um bom tempo, permanece com boa aparência, ótima consistência, cor saudável e segue sendo apetitosa e crocante. Se ainda não sabe, faça o teste. Acelga é uma das melhores verduras para se cozinhar. É possível fazer uma entrada de acelga com gengibre, pimenta dedo de moça e shoyu. Acredite, fica deliciosa. Acelga também vai bem no yakisoba ou numa sopa. Uma acelga bonita pode enfeitar lindos pratos, servir de base para aperitivos, seus brotos menores são capazes de substituir torradinhas e blinis. A refeição acaba ganhando um toque de classe, criatividade e alegria na apresentação. Sem falar na crocância e no sabor inesperado.
Enquanto eu refletia em silêncio, Ela me resgatou das minhas elocubrações: “Está vendo? Estou tentando falar sobre nós e você já está divagando, longe”, disse-me, dando as costas e indo embora. Apanhou a bolsa pela alça como se fosse o último balaio de pães da santa ceia e carregou consigo, empurrando a porta com força ao sair. Deixou-me sozinho com as minhas reminiscências sobre ser perecível, o perfume dela ainda pairando no ar. Não sei nada sobre amar, muito menos sobre esquecer e não entendo sobre a perenidade dos sentimentos. Só sei que, se fosse para ser perecível, eu queria ser uma acelga.