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Coronavírus pode reduzir consumo de carne e alterar a base da dieta no mundo
Se o consumo de carnes exóticas tira o sono de muita gente, ao fazer a inevitável associação com o surgimento de novas doenças, o avanço das fronteiras agropecuárias tem passado como um coadjuvante na discussão. No entanto, a prática pode ser tão arriscada quanto, já que os rebanhos também podem entrar em contato com vírus inéditos.
Muito mais do que o consumo de animais silvestres, o que mais preocupa os especialistas quando se trata de novas pandemias é o aumento desenfreado do consumo de carne em todo o mundo, mas em especial pela China, país mais populoso do planeta com uma massa de 1,4 bilhões de pessoas capaz de alterar todo um sistema produtivo alimentar.
De acordo com dados da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), antes da década de 1990 os chineses comiam menos de 25 quilos de carne ao ano. Em 2013, quando o último relatório alimentar feito pela programa foi divulgado, esse valor ultrapassava a marca dos 60 quilos.
No Brasil, esse consumo estava perto dos 100 quilos na mesma época e nos EUA, país que mais consome carne no mundo, esse dado era de 120 quilos em média. Na prática, enquanto o número de pessoas na Terra dobrou nos últimos 50 anos, a produção de carne neste mesmo período cresceu cinco vezes, impulsionando a área de criação de animais de abate para dentro das florestas.
Em entrevista ao jornal inglês The Independent no fim do mês passado, David Quammen, autor do best-seller Spillover: Infecções animais e a próxima pandemia humana (2012), alertou para o fato dos animais, plantas e fungos das florestas portarem vírus únicos e diversos. “Quando derrubamos florestas tropicais para construir pastos, explorar a madeira, fazer mineração ou capturar animais silvestres como alimento, estamos nos expondo a esses vírus. É como se você demolisse um velho celeiro, e a poeira voasse. Quando você destrói uma floresta tropical, os vírus desconhecidos voam e tem a oportunidade de entrar em contato com os humanos”, explicou.
Ao Bom Gourmet, o oficial do Programa para Sistemas Alimentares e Agricultura Sustentáveis do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), James Lomax reforçou a intenção da instituição de propor uma discussão sobre o sistema de produção intensiva, logo que a pandemia do novo coronavírus cesse. “Esta crise exigirá, em seu devido tempo, profundas reflexões sobre o risco para a saúde global representado por certos sistemas de produção de alimentos. As evidências mostram que há um risco particularmente elevado de contaminações, graças a ocupação de terras em florestas tropicais. Precisamos acabar com a conversão de habitats naturais em terras de produção, aumentar a produtividade dos terrenos já existentes para esses fins e mudar a dieta para alimentos que respeitem os limites de nossos recursos naturais”, defendeu Lomax.
A questão da segurança sanitária ganha ainda mais importância quando olhamos para a situação do Brasil, um dos maiores produtores de carne do mundo -- que vive o dilema da expansão da fronteira agropecuária em biomas como o Cerrado e a Floresta Amazônica.
Representando a associação internacional Slow Food no Brasil, Glenn Makuta explica que é o próprio modelo de produção intensivo originado no Ocidente que facilita o surgimento das doenças infecciosas. “O modelo industrial vigente vai marginalizando as produções menores, resultando em genéticas animais monótonas. Com isso vai-se naturalizando gradualmente práticas tais como o uso compulsivo de antibióticos, confinamento de grande quantidade de animais em espaços muito restritos e a privação dos comportamentos naturais esperados desses animais”, explica Makuta.
Mas ao contrário do que muitos podem pensar, evitar o surgimento de novas doenças e respeitar os limites dos recursos naturais não está necessariamente ligado à imposição de hábitos alimentares exclusivamente veganos ou vegetarianos. Os especialistas ouvidos pela reportagem foram unânimes em concordar que, na realidade, o mundo está no limiar da alteração da dieta para um modelo que reduza, mas não exclua a carne. E sobretudo que privilegie alimentos cultivados em sistemas biodiversos.
“A agricultura familiar e a agroecologia são alternativas possíveis e necessárias da forma de se produzir, de organizar socialmente, de comercializar e dar acesso a alimentos diversificados, em sua maioria produtos vegetais, mas também de derivados de origem animal”, explica Makuta.
“Quando se tem um modelo produtivo biodiverso, há menor ocorrência de doenças na produção, menos consumo de insumos, mais mão de obra empregada, mais nutrientes ingeridos, circuitos de comercialização mais curtos, respeito à sazonalidade. Passamos a nos reconectar com os ciclos e limitações da natureza, a qual custamos entender que integramos, aumentando a nossa saúde e resiliência e também a dos sistemas produtivos”, argumenta.
Mas para chegarmos a esse patamar, a mudança precisará ser sentida nas gôndolas de supermercado nos próximos meses. É no que acredita o chef e professor de gastronomia da Universidade Positivo, Renato Bedore. “Comer a carne em si, não gera o problema. Mas o sistema produtivo e de comercialização é que está desiquilibrado. A forma como vendemos a carne é responsável pela quantidade alta que consumimos. Antes uma família abatia uma vaca e aquilo era alimento por seis meses. Mas veja, só tinha uma vez filé mignon. O problema é que agora enchemos as prateleiras com esses tipos de corte e há um grande desperdício do resto”, explica. “A nossa forma de alimentação sempre foi baseada em legumes, folhas e a carne era acompanhamento. Agora ela é o prato principal. Acredito que a pandemia pode mudar esse cenário”, diz.