Produtos & Ingredientes
Manteiga, o “milagre cotidiano”
Ela é metade da dupla mais tradicional do café da manhã paulista: o pão com manteiga. Mas, enquanto o primeiro tem recebido tratamento especial, com o boom da fermentação natural, a manteiga permanece ali na porta da geladeira, coadjuvante. Terrível injustiça com um dos ingredientes mais fascinantes da gastronomia, que protagoniza grandes momentos à mesa ou no fogão. Está na hora de dar a ela a devida atenção.

Cremosa, delicada, com sabor suave de leite, a manteiga é uma mistura de substâncias que não se combinam, uma emulsão de água em óleo. A elaboração não poderia ser mais simples: é feita de creme de leite gordo, batido vigorosamente até que a gordura se separe dos líquidos. É tão fácil fazê-la que, muitas vezes, surge de um acidente de cozinha. É só bater demais o chantilly e… o creme vira uma manteiga amarelinha.
Estudioso dos processos físicos e químicos na cozinha, o americano Harold McGee, em seu Comida e Cozinha, diz que a formação da manteiga é “um milagre cotidiano, uma ocasião para admiração e deleite”, e que os cozinheiros deveriam bater creme excessivamente de propósito vez ou outra.
Fácil de fazer, ela é, porém, mais difícil de usar na cozinha que outras gorduras. A manteiga não tolera o calor tão bem quanto óleos como o de girassol ou o azeite – é só descuidar e os sólidos presentes nela se queimam. Além disso, a composição – quantidades de gordura e de água – é determinante não só para o sabor, mas também para o uso em receitas. O teor de água influencia o derretimento, o que altera o resultado final.
As desvantagens da manteiga na cozinha são compensadas pelo sabor que dá à comida, “incomparável ao de qualquer outro óleo ou gordura”, como afirma Alan Davidson, em The Oxford Companion to Food. Isso deve-se principalmente a ésteres como as lactonas, abundantes em sua composição. São eles que dão a cor marrom aos ingredientes cozidos em manteiga.
Uma das culinárias que mais valoriza a manteiga é a francesa. “Um dia, quando eu trabalhava no Mocotó, o Rodrigo Oliveira disse que usava sete temperos”, conta o chef Julien Mercier. “Eu disse que, na França, também temos sete temperos: manteiga, manteiga, manteiga, manteiga, manteiga, manteiga e manteiga.” De fato, a comida francesa leva quantidades copiosas do ingrediente.
Sem culpa
“Manteiga nunca machuca”, já dizia Julia Child, que popularizou a comida francesa nos Estados Unidos nos anos 1960. Suas receitas chegavam a usar barras inteiras de manteiga. Mais de meio século depois, a gordura animal passou de mocinha a vilã – e a mocinha novamente. Em 1977, um comitê do Senado americano liderado por George McGovern recomendou consumo menor de gorduras animais.
Mas os tempos mudaram. Há um ano, um estudo com testes feitos em 600 mil pessoas pela Universidade de Cambridge concluiu que as gorduras não estão relacionadas à incidência de doenças no coração. A revista Time estampou na capa “Coma Manteiga”, explicando que a abolição da gordura não evitou a obesidade dos americanos. Ao cortar manteiga e carne gorda, a população aumentou o consumo de carboidratos, ingeriu mais calorias e engordou mais.
A conclusão é que, desde que em quantidade equilibrada, é recomendável consumir manteiga, ovos e leite integral. O Guia Alimentar para a População Brasileira, lançado pelo Ministério da Saúde no ano passado, indica consumo em pequenas quantidades em preparos culinários. Então, o negócio é aproveitar que o momento está favorável e comer manteiga sem culpa.
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Tem que ser untuosa e jovem, sem ranço
Uma boa manteiga equilibra três atributos: untuosidade, cremosidade e gosto de leite. A cor deveria ser também indicador de qualidade – quanto mais gordura, mais amarelada é a manteiga e, de acordo com Harold McGee, isso é indicação de que a vaca comeu pasto (a ração deixa a gordura esbranquiçada). Mas o problema é que alguns produtores, querendo aparentar qualidade, usam corantes como cúrcuma ou urucum, ingredientes que além de dar cor podem disfarçar uma manteiga inferior.
Manteiga boa é jovem, sem gosto de ranço. E aí não tem segredo: é só conferir a data de fabricação. Quanto mais jovem, melhor – ela começa a se deteriorar assim que acaba de ser produzida. Indicação de origem é outro parâmetro. Regiões célebres pelos laticínios como a Normandia, na França, costumam dar boas manteigas.
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Dá para fazer manteiga de ovelha, de cabra, de búfala e até iaque
Em qualquer lugar do mundo com consumo histórico de leite, há registros de produção de manteiga. Da Índia à Escandinávia, ela foi descoberta em várias versões, não apenas de leite de vaca. Leites de ovelha, de cabra, de búfala e até a fêmea do tibetano iaque têm a gordura necessária para fazer o ingrediente.
No Tibete, existe o costume de beber chá de manteiga: mistura de chá, manteiga de leite de iaque e sal. A xícara é enchida até a borda toda vez que o convidado toma um gole. A etiqueta recomenda nunca deixá-la vazia. Se o convidado não quiser mais, deve parar de beber e, na hora de ir embora, tomar de uma vez só.
Como o armazenamento da manteiga não era uma forma tão eficaz de preservar os nutrientes do leite quanto o queijo, ela era mais usada pelos plebeus durante a Idade Média. Após seu consumo ser liberado durante a Quaresma, no século 16, o uso gastronômico da manteiga aumentou no Velho Mundo. Logo, carnes e hortaliças eram servidas mergulhadas no ingrediente.
A combinação clássica de café da manhã, o pão com manteiga, surgiu na mesma época. Começou com a classe média europeia recém-surgida. Dali, o hábito se espalhou para as colônias pelo mundo.
Em locais como a Índia, há registros de manteiga e sua versão clarificada local, o ghee, de pelo menos 1,5 mil anos. De acordo com Alan Davidson, a transformação da manteiga em ghee permitia sua conservação por mais tempo no clima quente indiano.
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Explore uso culinários da manteiga
Além de estar pronta para ser passada no pão, a manteiga pode ser alterada para que suas características fiquem mais adequadas para algumas tarefas – como fritar ou espessar. Veja aqui algumas formas de uso na cozinha:
Manteiga clarificada
A partir do momento em que é feita, a manteiga começa a estragar e ficar lentamente rançosa. De acordo com Alan Davidson, isso se deve a dois processos: oxidação e hidrólise, causados respectivamente pelo oxigênio e pela água. Uma maneira simples de prolongar a vida útil do produto é a clarificação. Como a manteiga é uma emulsão de água em óleo, basta aquecê-la para separá-los novamente. Isso é feito em fogo baixo ou em banho-maria, com cuidado para não queimar. A gordura fica por cima, enquanto a água vai para o fundo. Uma espuma pode se formar no topo – são os sólidos do leite, que devem ser removidos com uma escumadeira. “Percebi que as manteigas nacionais costumam gerar muita espuma e você acaba perdendo produto”, diz a professora da Anhembi Morumbi Luci de Boer. “Para clarificar, talvez seja melhor usar uma argentina, como a La Serenissima.” Depois da separação, é só deixar a mistura esfriar um pouco e colocar a parte superior em um frasco para armazenamento. O resultado é a manteiga clarificada, que aguenta temperaturas maiores sem queimar – serve até para frituras.
Beurre noisette
É uma das maneiras mais populares de usar manteiga na comida francesa. “O nome significa manteiga avelã por causa da coloração caramelo”, diz Luci de Boer. Na cozinha inglesa, é chamada de brown butter. Para fazer, basta levar a manteiga ao fogo baixo em uma panela e aquecer até que derreta. Então, ainda no fogo baixo, espere que ele fique cor de caramelo. Cuidado para não deixar queimar.
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Beurre manié (roux)
A “manteiga amassada” é um bom espessante para molhos e sopas, além de ser muito simples de fazer. Ao ser misturada a um líquido quente, ela derrete, soltando a farinha sem fazer bolinhas e empelotar. Para fazer, deixe a manteiga em ponto de pomada (temperatura ambiente) e junte o mesmo peso de farinha de trigo. Misture bem e reserve.
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Quanto mais gordura, melhor
O processo industrial de elaboração da manteiga é semelhante ao caseiro. O leite gordo de vaca passa pela pasteurização e depois vai para a desnatadeira, uma máquina de alta rotação que separa a nata do leite. A nata, então, é batida e vira manteiga. “Nós já precisávamos desnatar o leite para fazer alguns dos nossos queijos”, conta Viviana Roncoletta, proprietária do Laticínio Gioia. Uma das maneiras de reaproveitar essa gordura que sobra é fazer manteiga. Não há aditivos: o produto já sai amarelinho naturalmente.
A quantidade de gordura depende do tipo de vaca. O Gioia, por exemplo, começou a usar gado do tipo Jérsei. “Os produtores geralmente não querem vacas Jérsei, que produzem menos leite”, diz Roncoletta. “Mas a capacidade de concentrar gordura delas é muito superior.” Agora, a empresa possui 60 cabeças de gado Jérsei. O leite delas tem 4,5% de gordura, em comparação com os 3% oferecidos pelo gado holandês.
Ricardo Cotrim Rodriguez, da Tuttolatte, marca criada especialmente para a inauguração do Eataly de São Paulo, trabalha apenas com produtos frescos. Todos os dias, faz manteiga na fazenda em Amparo, a partir do leite de vacas Simental.
O produtor garante que sua manteiga tem 75% de gordura, como as italianas. “As brasileiras costumam ter água adicionada à gordura, por isso a qualidade é inferior”, afirma.
A manteiga chega ao Eataly em barra e os clientes escolhem qual tamanho de pedaço querem levar para casa. “Decidimos vender a manteiga por peso, como se fazia antigamente”, conta ele. A Tuttolatte também produz manteiga a partir de leite de búfala. Em fase de testes, o ingrediente deve passar a ser vendido no Eataly dentro de dois meses.