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Chefs contam como é a profissão nua e crua
Como em um cenário dantesco, é uníssono o coro dos cozinheiros que estão no topo: “Deixai toda esperança, vós que entrais”. A cozinha profissional não é exatamente o inferno (exceto pelas temperaturas elevadas), mas guarda provações aos novatos. O Bom Gourmet conversou com Ivo Lopes, Ivan Lopes, Eva dos Santos, Kika Marder e Lênin Palhano, chefs eleitos pelo Prêmio Bom Gourmet 2015, para entender como se constrói a carreira de cozinheiro.
Começar na pia, lavando a louça, descascando camarão e picando legumes não é o sonho dos recém-formados em gastronomia, mas é onde a maior parte dos grandes chefs atuais estavam há alguns anos. E muitos deles não passaram pela escola. “A escola é fundamental para ter um diploma e conhecer técnicas e equipamentos. Durante o período do curso, você passa por todas as áreas. Em um restaurante tem que saber esperar e ser muito dedicado, pode ficar até um ano fazendo a mesma coisa”, alerta o chef Ivan Lopes, que foi iniciado na cozinha por seu irmão mais velho, Ivo Lopes, em 1999. Ivo, aliás, foi professor para muitos chefs de diferentes gerações, como Lênin Palhano.
“Ser cozinheiro não é como em outras profissões. Temos horário para entrar, mas não para sair. Depois que o restaurante fecha, tem que limpar e organizar tudo e só depois ir embora. Muita gente não entende isso.”
Ivan Lopes
Palhano assumiu em 2015 a gerência do restaurante Nomade, dentro do hotel-boutique Nomaa, depois de dez anos de carreira e de ter cursado gastronomia. Antes de chegar sequer próximo ao fogão, ele começou como lavador de pratos no Terra Madre, onde assumiu como chef aos 23 anos, que ele considera “muito cedo”. “Acredito que antes de começar um curso, primeiro é importante trabalhar na área para entender o universo da cozinha e ver se quer seguir esta carreira”, diz. Além da experiência, estudo por conta própria é um dos segredos para se destacar.
“A parte de empresa é muito desgastante. Você acaba se afastando mais das panelas do que você gostaria.”
Lênin Palhano, chef do Nomade
Sacrifícios e recompensas
Aguentar longas horas em pé, com um trabalho por vezes repetitivo – pense em cortar quilos de cebola, salsão e cenoura em quadrados de um milímetro – é a maior provação física. Cuidar do mise en place é uma das tarefas para os novatos e, como todo trabalho manual, a prática leva à perfeição: descascar, picar, filetar e desossar fica cada vez mais rápido e mais preciso. Saber lavar bem a cozinha inteira ao final do expediente é outra obrigação para quem quer comandar uma cozinha no futuro. “Como você vai cobrar sua cozinha limpa se você não souber limpar?”, questiona Ivan, que chefiou o Terra Madre e o Mukeka.
Para chegar a um patamar elevado, Palhano aconselha não se acomodar: “Tive que ir a grandes centros como Rio de Janeiro e Lima, no Peru, aprender mais, porque havia esgotado as possibilidades em Curitiba”, afirma.
A profissão também exige sacrifícios emocionais. Um dos maiores é cozinhar em banho-maria o ego: saber ouvir críticas é que fez muitos chefs caminharem adiante. “Não fiz escola de gastronomia, por isso sempre foi difícil provar meu trabalho”, revela Ivan. Alex Atala, a inspiração de muitos cozinheiros e também aspirantes, rememorou em episódio da série Chef’s Table uma frase que Erick Jacquin lhe disse em uma conversa franca: “Você é um bom cozinheiro, sabe dar sabor. Mas nunca vai fazer uma cozinha francesa como eu”. A frase soou como uma provocação para Atala, que decidiu ser o melhor chef do Brasil. Conseguiu. Mas seu caminho é único e assim como em outras profissões criativas, não há receita para o sucesso.
Prática usual mesmo para quem alcançou o posto de chef, a passagem temporária por outros restaurantes para aprender novas técnicas, modos de preparo e uso de ingredientes é vista com bons olhos pelos pares. Especialmente para quem está começando. “Trabalhe com pessoas que você admira e tire o melhor de cada um. E saiba que não existe lugar perfeito”, aconselha Kika Marder, chef e proprietária do Sel et Sucre Bistro, que em 2003 trocou a carreira em publicidade para entrar na cozinha do Boulevard sob o comando do mestre Celso Freire.
“Eu gosto de comida de panela e sempre soube qual era o meu caminho. Respeito todos os estilos, mas não vou fazer espuma.”
Kika Marder, chef do Sel et Sucre Bistro
Acompanha qualquer carreira a humildade. “Tem que ouvir o que as pessoas têm para falar e prestar atenção em tudo em uma cozinha, porque a todo momento tem alguém para ensinar algo diferente”, alerta Eva dos Santos, que também foi pupila de Celso Freire antes de entrar para o Grupo Victor, onde está há 16 anos. “O cozinheiro tem que perder a arrogância. O alimento é mais importante que a gente”, diz. Com o Boulevard, Freire trouxe a alta cozinha para Curitiba e começou um mercado que tem se consolidado na cidade.
“Temos que transformar a cozinha de restaurante em um lugar mais tranquilo. As pessoas confundem crítica ao trabalho com crítica pessoal.”
Eva dos Santos, chef do Bistrô do Victor
Glamour é começar debaixo
Com a popularização da profissão de cozinheiro profissional, a figura do chef foi cercada de glamorização e quem conhece a realidade da cozinha esmigalha as ilusões: “Enquanto todo mundo está se divertindo, a gente está trabalhando”, diz Kika. “É importante ter persistência. Tem mês que não temos fim de semana nem feriado e os colegas de trabalho viram nossa família”, completa Ivan.
Pular etapas, nem pensar: antes de assumir a bancada de garde manger, uma das primeiras estações de um iniciante, deve-se ter passado pela louça suja e pela higienização de ingredientes, entre outras tarefas que cabem aos ajudantes. Em português claro: ninguém entra em uma cozinha pela primeira vez em cargo de liderança. “O título de chef não é pra qualquer um. É uma profissão que mexe com a emoção das pessoas e existem situações complicadíssimas no dia a dia de um restaurante. É preciso ter jogo de cintura para tentar agradar a todos”, afirma Ivo Lopes, hoje chef consultor do grupo de restaurantes Alessandro & Frederico.
“Disciplina, hierarquia e respeito fazem parte da filosofia de uma cozinha.”
Ivo Lopes, chef consultor do grupo Alessandro & Frederico
Além de ser responsável pelo cardápio, um chef também deve ser um exímio gestor de pessoas e recursos, dividindo-se entre as panelas e a escrivaninha. “Nosso trabalho nunca está consolidado. Quem é dono de restaurante sabe que quando criamos um nome temos que conquistar o cliente todos os dias”, diz Kika. Para isso, uma equipe azeitada, que funcione como um relógio suíço mesmo quando o chef se ausenta, é primordial. E só começando do cargo mais baixo para saber como é.
Nova constelação
Eva, Ivan, Ivo, Lênin e Kika foram eleitos pelo Prêmio Bom Gourmet 2015 , que em setembro elege uma nova constelação . Os cinco cozinheiros profissionais escolhidos pelo júri especializado do Prêmio Bom Gourmet 2016 serão conhecidos no dia 1º.