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Chef ex-apresentador de TV acredita que uma refeição pode ter no máximo 60 g de carne
Ele jogou mais gordura nos assados já bem untados, com um sorriso e o copo de vinho constantes. Ria de suas próprias piadas e dizia aos americanos que cozinhar em casa não precisava ser uma coisa particularmente sofisticada ou difícil (bom, Julia Child, a outra principal chef televisiva dessa época, já havia incursionado por esse terreno) para ser bárbara e extremamente divertida.
E Graham Kerr estava sempre pulando. Décadas antes de Emeril Lagasse gritar “Bam!” no momento joga uma pitada de pimenta caiena ou alho na panela, Kerr definiu o cozinheiro da TV como um homem cheio de energia e constantemente em movimento: o “Galloping Gourmet” (Gourmet Galopante), como dizia o título do programa.
O início foi em 1969, em frente a uma plateia ao vivo, e Kerr acabou fisgando os EUA na década de 1970 com o novo conceito de que assistir a alguém cozinhando era, sobretudo, algo divertido.
Ele era bonitão, britânico, engraçado e, no auge da revolução sexual, conseguia entusiasmar plateias com uma piadinha sobre circuncisão enquanto descascava um pepino. A mídia o batizou de “o sumo sacerdote do hedonismo”.
A alegria, que era quase sua marca registrada, aparecia nos primeiros minutos de cada programa, quando corria em meio ao público, armado com um copo de vinho, e depois corria de volta para o palco e saltava sobre duas cadeiras sem derramar uma gota da bebida (graças ao plástico filme que protegia o copo). Invariavelmente, acabava se jogando em sua cadeira com um “Ufa!”.
Hoje, aos 82 anos, Kerr é mais comedido. Seus dias de pulos acabaram, mas ainda hoje caminha com certa velocidade todas as manhãs, nos arredores de sua casa, ao norte de Seattle, nos Estados Unidos, onde vive com a filha Tessa e o marido dela.
Ele ainda cozinha, mas não prepara mais hambúrgueres porque acredita que 60 gramas é carne o suficiente para uma refeição, e completa dizendo: “Não dá para fazer um hambúrguer decente com 60 gramas”.
Porém, chegar a essa moderação foi difícil. Na década de 1970, Kerr variava da indulgência ao ascetismo e à denúncia de excessos, inclusive seu próprio. Segundo ele, só gradualmente e com a idade conseguiu atingir o equilíbrio que permite alguns alimentos pré-preparados, feitos com o mínimo de gordura ou confusão.
“Você não adoraria acreditar que chegou ao meio termo e que agora está levando uma vida perfeitamente equilibrada? Mas tive que percorrer um longo caminho para chegar a isso”, disse ele, rindo e admirando o vale do Rio Skagit.
Não há dúvida, dizem fãs e historiadores culturais, de que Kerr ajudou a definir uma virada nos EUA. Ele não foi o primeiro chef masculino na televisão: James Beard já estava lá, em 1946. O período de exibição de “The Galloping Gourmet” também foi relativamente curto; a CBS cancelou o show em 1971, após um acidente de carro no qual Kerr e sua esposa, Treena, ficaram gravemente feridos, precisando de um longo período de recuperação.
Mas em uma época de ansiedade e mudança – as lutas por direitos civis e a guerra do Vietnã estavam a pleno vapor – a mensagem otimista de Kerr fez sucesso. Mesmo quando alguma manobra na cozinha dava errado, e talvez especialmente quando dava errado, ele assegurava à plateia que tudo ficaria bem no final.
“Era mais do que o hedonismo, era alegria. Ele não parecia se preocupar com o conteúdo nutricional, nem com o fato de beber na cozinha. A ideia era apenas criar uma atmosfera divertida”, disse Kathleen Collins, autora do livro “Watching What We Eat: The Evolution of Television Cooking Shows”.
Para ser levado a sério, Kerr enfrentou dificuldades. Um ex-chef da Casa Branca o desacreditou, e o crítico de TV do New York Times, Jack Gould, escreveu que misturava “a informalidade da máquina de vender salgadinhos com a comida trazida do Four Seasons”.
Mas para muitos fãs, sua marca foi indelével. Bill Fountain, que hoje é professor em Dallas, mal acabara de completar cinco anos quando Kerr começou o programa. Fountain disse que sua mãe estava doente e seu pai trabalhava em dois empregos, e estava ausente na maior parte do tempo. Kerr passava a ideia de que cozinhar era algo que um garoto poderia fazer.
“Ele causou uma grande impressão em mim. Adoro cozinhar, e acho que essa paixão e esse prazer vieram de Graham”, disse Fountain, de 52 anos, em uma entrevista por telefone.
Filho de hoteleiros no sul da Inglaterra, Kerr cresceu na cozinha, mas já era adulto quando fez a conexão entre comida e entretenimento. Ele trabalhava como conselheiro alimentar da Real Força Aérea da Nova Zelândia, em 1960, quando de repente precisou substituir um oficial que iria realizar uma demonstração culinária. Ao fazer uma omelete, fez também o público rir. Um programa culinário na TV neozelandesa foi logo seguido por um na Austrália.
Nos programas de meia hora do “Galloping Gourmet”, gravados no Canadá e transmitidos nos Estados Unidos entre as novelas durante os dias da semana (e também visto na maioria dos países da comunidade britânica), o foco era a carne, muita carne, muitas vezes entremeada de creme de leite. Verduras e legumes eram meros acompanhamentos.
Em 1987, sua esposa (que também produzia o show e que sugeriu o salto sobre as cadeiras) teve um infarto e um derrame aos 53 anos de idade. Kerr botou a culpa em si mesmo e em sua culinária.
Nessa época, já havia mudado, adotado uma nova maneira de pensar a comida como resultado de seu despertar religioso cristão, em meados da década de 1970, epifania parcialmente originada pelo desequilíbrio que havia visto em suas viagens, com países quase sem alimentos e outros com alimentos demais.
Seu zelo se intensificou quando Treena Kerr começou a se recuperar. Ele começou a combater os nitritos, molhos Alfredo e porções imensas e se tornou, segundo ele mesmo admite, um extremista.
“Eu costumava chamar os donuts de ‘pornografia comestível’, e achava que estava fazendo um favor, para o mundo. Peço desculpa por isso, de verdade. Foi um período ruim na minha vida.”
O equilíbrio de Graham Kerr levou sua cozinha para o caminho dos legumes e verduras e maior comodidade, mas menos regras – mensagem que também divulgou em sua última série de televisão, “Graham Kerr’s Gathering Place”, transmitida do início a meados da década de 2000.
Na hora do jantar, ele gosta de cozinhar durante uns 30 minutos enquanto ouve a NPR. Escreveu um livro de memórias, “Flash of Silver: The Leap That Changed My World”, e dá aulas de culinária ocasionais diretamente de sua cozinha, pelo Skype.
Quando cozinha para alguns convidados, porém, ele ainda parece estar no set, descrevendo em detalhes cada passo de um prato que chama de Brunch do Graham, frequentemente com uma tiradinha ou piada.
Assou uma batata doce e preparou um hambúrguer vegetariano com uma pequena quantidade de azeite. Então, misturou ovos inteiros com Egg Beaters, produto que contém ovos com teor reduzido de colesterol, e cobriu o hambúrguer com uma fatia da batata doce, a mistura de ovo, uma fatia fina de queijo e uma pitada de páprica. Para acompanhar, serviu uma salada de folhas e vinho sem álcool.
Hoje Kerr cozinha em um fogão elétrico. “O gás é para quando você tem que ser rápido em uma cozinha movimentada, e já não preciso mais disso”, constata. Conta que não tem TV a cabo há 22 anos, por isso a grande variedade de programas de culinária atuais é um mistério para ele. E também evita assistir seus programas antigos.
Sua esposa, que morreu no ano passado, aos 82 anos, sempre o aconselhou a não analisar o que fazia de forma tão espontânea e tão bem, porque estudar o que dá e o que não dá certo destruiria a espontaneidade – e a alegria.
E cita o que ela costumava dizer: “Se você se assiste, se torna uma pessoa editada. Não faça isso”.
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