Pessoas
Conheça o premiado paranaense “caçador de cafés”
Era um cenário um tanto ritualístico para um fim de tarde. Hugo Rocco, 35, me recebeu para um bate-papo enquanto ainda concentrava sua atenção em uma mesa comprida, nos fundos de uma casa no Juvevê, com 20 copos organizados em pares. Junto com dois parceiros, dava goles rápidos e barulhentos na bebida, usando uma colherinha lavada em um copo de água entre uma prova e outra. “Estou há 40 minutos provando cafés”, disse. Era só mais um dia de trabalho. Imaginei, claro, que a insônia deve ser companheira fiel do bem-humorado e autointitulado coffee hunter, um título que lembra propositalmente head hunter – o antigo caça-talentos, mas com um nome melhor para colocar no LinkedIn.
Campeão brasileiro de Aeropress e terceiro do mundo neste método de passar a bebida, o caçador de cafés viaja o Brasil em busca de grãos de “alta qualidade”, como ele define, que serão torrados, moídos, embalados e enviados para os mais de mil clientes do serviço de assinatura da bebida que toca com dois sócios (mais voltados à parte operacional), o Moka Clube. O assinante paga uma mensalidade, de R$ 38 (mais frete), e recebe em casa todos os meses 250 gramas de pó para preparar a bebida. Minas, Espírito Santo, Paraná… A única regra, de fato, é passar pelo crivo de Rocco.
Essa é uma dessas histórias de gente predestinada: e ex-engenheiro da Copel, que sequer bebia café até 2009, nasceu praticamente com o pé no cafezal, em Londrina. Precisou, porém, ser introduzido a este mundo na Inglaterra. Hoje, é a síntese de um cenário que se torna forte em Curitiba. “Estamos na Meca do café especial”, ele aposta. “Meio hipster [um sinônimo para descolado], não?”, eu pergunto. “É”, ele admite.
Convenhamos, Hugo: esse nome, coffee hunter, não existia, né?
Não. Nós meio que criamos mesmo (risos). Já que eu ia ficar visitando fazendas e escolhendo grãos, como um caçador de cafés, pensamos em coffee hunter e isso soava bem. Achei que ia ficar legal no cartão.
Eu quase o imagino com um chapéu de Indiana Jones indo de fazenda em fazenda. Como é teu processo de procurar cafés?
(Risos) Mudou bastante do começo para cá. Não éramos conhecidos lá em 2012, quando começamos. Mas eu pesquisava muito. Tem um concurso internacional chamado Cup of Excellence. Eu comecei procurando nele quem eram os melhores produtores do Brasil e aí ficava tentando achar o cara no Facebook, na internet. Quando achava, entrava em contato e pedia para ir lá, mesmo sem ter provado antes o café, mas já imaginando que era bom. Pegávamos o carro, saíamos daqui e chegávamos na fazenda para comprar o café. Isso no país inteiro. Não tínhamos o know-how na época para saber se o café era bom ou não. Era uma análise com base no histórico do produtor e no preço que podíamos pagar. Isso foi mudando. Cada vez que a gente ia, fazia amizades. Um produtor apresentava o vizinho e o vizinho do vizinho. Começamos a montar uma rede nas regiões produtoras e foi ficando cada vez mais fácil encontrar produtores. Hoje temos produtores e amigos em várias regiões.
Continua assim?
Não, mudou. Desde o ano passado, e isso era um sonho nosso, o produtor envia amostras. Fomos reconhecidos pelo trabalho de mostrar cafés bons para o brasileiro. Hoje, os produtores mandam e-mail pedindo para enviar seu café. Nós provamos [a descrição no início da reportagem é de uma destas provas] e aqueles que gostamos, vamos buscar ou mandamos trazer via transportadora, dependendo do volume. Tentamos sempre visitar o produtor para ver como é a produção, como ele trata a natureza, como é o trabalho social. Ir lá e apertar a mão. Mas, pelo volume atual, o trabalho fica mais aqui mesmo.
Onde estão os assinantes do Moka Clube?
Na última vez que vi, em todos os estados. Chegamos a mandar cafés para a Argentina.
Por que alguém te paga para escolher os cafés que ela vai provar?
Nós mostramos o que o gringo está tomando lá fora. Aquilo que a gente produz aqui e que vocês nem sabiam que existe. Desde 2012 fazemos isso. Mostrar o café, quem produz, a história, as cidades. Lá no começo, deixamos claro: vamos comprar café de altíssima qualidade; vamos torrar com cuidado e métodos artesanais; vamos embalar em uma embalagem que mostra todo o background do produto, a melhor que existem no Brasil em termos de frescor e armazenamento; e, principalmente, vamos torrar e enviar imediatamente, então ele chega muito fresco – o café vai decaindo, perdendo qualidade com o passar do tempo. Quem está em Curitiba e São Paulo recebe o café no outro dia. Quando abre a caixinha, ele está explodindo em aroma.
Mas o que é um café de qualidade?
A qualidade do café vem de lavoura. O grão verde é livre de defeitos – não são colhidos na época errada, comidos por um bichinho como o da goiaba, peneirados erroneamente ou têm pedaços de pau e pedra. Tecnicamente, a Specialty Coffee Association (SCA – uma associação mundial que se dedica a classificar cafés finos) dá notas de aroma, sabor, acidez, corpo e retrogosto para cada café avaliado. É uma pontuação. Eu fiz um curso para aprender a dar essas notas. Dentro destes parâmetros, todos os cafés acima de 80 pontos são considerados cafés especiais. Para um leigo, é um café que tem origem. Uma bebida em que eu consigo dizer: ‘esse é um café que foi produzido no Paraná, ele tem um sabor residual de laranja, tem uma acidez cítrica’. Um café abaixo de 80 pontos é aquele em que já fica mais difícil falar esses detalhes. Um café de 79 pontos é um café bom, mas que não tem algo que é só dele.
O terroir [combinação de geografia e clima] influencia muito nessa qualidade?
Muito. Mas, para mim, o pós-colheita influencia mais. É 70% de tudo que você fez. Tem que cuidar bem da plantinha, mas o jeito que você seca, armazena ou cuida do terreiro de secagem mudam o sabor da bebida. Hoje vemos cafés aqui do Paraná, onde não tem altitude, e que antes eram ruins, com gosto de laranja, acidez cítrica maravilhosa…
Mas então ainda existe essa história de falar que uma região é melhor que a outra…
Mas não dá. Primeiro porque varia de ano para ano. Depois, porque é um critério muito subjetivo, pode-se sempre falar dos vencedores do ano no Cup of Excellence. Até um tempo atrás, era sul de Minas. Mas começaram a aparecer outras microrregiões. Nosso café do mês [em maio de 2017, quando a entrevista foi realizada] é de Alto Caparaó, em Minas, divisa com Espírito Santo. Temos o Paraná, que começou a produzir cafés especiais há pouco tempo e já está aparecendo entre os primeiros.
O Paraná? É mesmo?
Foi uma grande surpresa o café paranaense há cinco anos. Falava-se que o café do estado era uma porcaria e, de repente, sai um café do Paraná no Cup of Excellence. Ao mesmo tempo, conseguimos comprar um café daqui que era maravilhoso. Foi comparado com malbec [uva que fornece alguns dos vinhos mais respeitados do mundo]. Foi um ano muito bom de cafés especiais. Foi quando o estado entrou nesse mundo.
Laranja, jabuticaba… Como você passou a perceber tudo isso em um café?
Lá no começo, em 2012, eu fiz alguns cursos de torra e análise sensorial. O que eu percebi é que análise sensorial não se aprende em curso. Tem algumas técnicas, mas o mais importante é seu dia a dia e como você usa seu palato e olfato. No comecinho, fui em uma feira de cafés e comecei a ver as pessoas agindo durante o cupping, que é isso aqui [aponta para a mesa de provas]. Quando o cara escrevia na fichinha ‘jabuticaba’ ou ‘manga’ eu pensava: ‘ah, isso aí é mentira’. Então desenvolvi uma técnica neste dia. Falei: ‘vou conversar com duas pessoas em momentos diferentes e ver o que elas falam’. Eram dois grandes profissionais: a Carol [Franco, ex-Lucca Café], que eu conhecia, e o Tim Wendelboe [norueguês com status de papa dos cafés], que eu nem sabia quem era. Na época eu não gostava de manga. Senti o gosto da fruta em uma das bebidas. Dei um passo para trás e esperei todo mundo passar por ali. Na hora que a Carol passou, perguntei a ela o que havia sentido. Ela disse ‘manga’ e foi embora. Depois passou esse cara [Wendelboe], eu me apresentei e fiz a mesma pergunta. Ele só respondeu: ‘mango’. Nesse dia eu percebi que é muito subjetivo o paladar, mas os profissionais sempre vão falar a mesma coisa ou coisas bem próximas.
Por que o brasileiro consome menos este tipo de café?
Tem uma barreira cultural. As pessoas estão comprando uma bebida no mercado há muito tempo. E, às vezes, elas experimentam os especiais e não gostam de primeira. No primeiro gole falam: ‘isso aí é um chafé’, ‘isso aí tá fraco’. Mas, no segundo, pensam: ‘opa, mas isso aí tem uma coisa diferente’. Elas ainda estão conhecendo. É um mercado que cresce 15% ao ano no Brasil.
Será que o preço não pesa mais do que o gosto?
O café especial é bem mais caro, mas porque as pessoas estão comparando. Algumas entram aqui e perguntam quanto é o quilo do café. Depois que a gente fala, dizem: ‘tá louco? No mercado está bem mais barato’. Mas você não entra na loja da Mercedes, pergunta o preço do carro e fala: ‘o Uno está bem mais barato’. Você não está comparando a mesma coisa. É uma barreira? Sim. Mas se você andar em uma Mercedes, nunca mais vai querer andar em um Uno. E as pessoas estão mudando rapidamente.
Por que alguém paga R$ 600 no quilo de um café literalmente defecado por um pássaro [o Jacu Bird é feito com grãos comidos e depois ‘liberados’ por jacus, ou Penelopes, ave típica da América Latina]. Ele é realmente tão bom?
Bom, vou te dizer que ele não é tão bom. Ele tem uma característica própria: é suave e com gosto de chá preto. Ele tem também um marketing muito bom, mas não foi só por causa disso que fez sucesso. Fui lá e entendi a história. Ele está em um vale e tem uma montanha ao lado. O Ibama catalogou 600 jacus nesta área. E é um pássaro grande, que come bastante. Na época da colheita, esse pássaro vinha e acabava com o café dele [do produtor, a fazenda Camocim, no Espírito Santo]. Ele tem uma plantação de café orgânico e as árvores não são bonitinhas. Aí ainda vinha o pássaro e comia tudo. O produtor perdia muito. Aí ele foi para fora e viu que tinha o Kopi Luwak. Era parecido. Daí ele fez todo o trabalho em cima. Depois, viu que mesmo caro, o café estava vendendo. Agora, em relação à análise sensorial, se é bom ou não… Posso trazer vários que são bem melhores e custam bem menos. Ali tem efeito placebo, uma apresentação muito bonita e um pouco do inusitado. Vale a pena para tomar uma vez e entender como é que é.
Você teorizou sobre por que Curitiba tem uma cena tão aquecida de cafés especiais?
Curitiba sem dúvida é a Meca do café especial. Pode ser pelo trabalho do Lucca Cafés Especiais. Ele foi pioneiro. Muitos dos baristas que estavam lá nas competições passaram pelo Lucca. Foi um trabalho de ponta. Pode ser o clima também. E outra coisa, que eu não acredito muito, mas que todo mundo fala: ‘curitibano é meio fresco e gosta de provar coisas diferentes’. Pode ser. Eu viajo pelo interior e vejo que as pessoas continuam comprando cafés ruins. E aqui não. Hoje tem uma porrada de cafeterias. Você dá uma volta pelo centro e o que você toma de café bom por ali.
Ainda consegue sair com amigos que não entendem de café sem parecer um chato?
O que acontece é que não tenho amigos que não gostam de café (risos). Em geral, viramos um hub. As pessoas perguntam: ‘que café eu compro?’. Depois, dizem: ‘ah, eu não vou fazer café para você’. É bom. Eu não ia querer tomar mesmo.
Você toma quantas xícaras de café por dia?
Cara, ontem à noite eu tomei 250 gramas. Eu estava treinando para um campeonato.
Imagino que não tenha sido nenhum pouco fácil dormir….
Eu tenho problema para dormir. Eu não costumo beber café depois das 19 horas. Se tomar, não durmo mesmo. O problema é que o café aqui é muito bom. Aí saímos para visitar clientes, bebemos. Estamos regulando a máquina de torra, bebemos. Recebemos amostras, bebemos. Bebo café ao longo do dia. O dia inteiro.