Bom Gourmet
"O Mercadorama falava com sotaque do Paraná". Livro homenageia família criadora da marca
Se você é curitibano ou mora na cidade há pelo menos 20 anos, provavelmente circulou por corredores e gôndolas de um Mercadorama. Viu alterações, ao longo dos anos, na maneira do atendimento ao público, na chegada de produtos importados, na substituição dos equipamentos dos caixas e no aumento da quantidade de serviços oferecidos pelo varejo. A marca, que desapareceu em 2021, é parte da história da capital do estado. Seu legado foi registrado em Família Demeterco, o legado, livro produzido em 2024 para a família Demeterco, fundadora da rede, quando a empresa Demeterco Cia Limitada (DCL) completou 110 anos.
"Quando você conversa com pessoas que não são da família, percebe que elas têm uma memória muito carinhosa pelo Mercadorama", explica Diego Antonelli, autor do livro. "Indo a fundo na história, você entende algumas razões. Foi o primeiro supermercado do Paraná, do modo como a gente conhece, e o segundo do Brasil. Foi primeiro a criar o autoatendimento, uma revolução no modo de vender produtos", destaca.
A ideia do livro - apenas 20 cópias, que Bom Gourmet teve acesso - foi prestar uma homenagem à família Demeterco, que sustenta até hoje o legado da marca, e, nas palavras de Pedro Oliveira, neto de José Luiz Demeterco, ou Zeca, e filho de Leonor Demeterco, "perpetuar o legado e a imagem da empresa aos membros da família e às novas gerações", defende.
Cinema e supermercado
O nome Mercadorama surgiu em 1964, mas a história da empresa que criou a rede de supermercados, parte da história da cidade, é de bem antes. Precisamente nos primeiros dias de 1914, quando o jovem imigrante ucraniano Pedro Demeterco aceita a proposta de seu patrão, Fortunato Dias, para se tornar sócio do armazém de secos e molhados Fortunato & Paiva. Pedro tinha 25 anos, e passou a contar com 30% do negócio da família portuguesa. Pedro, conta o livro, jogava em todas as posições: "Atendia clientes, carregava mercadorias e organizava o estoque. Nunca reclamou de nada".
Quando assumiu o negócio, em 1924, Pedro formalizou a abertura da Demeterco & Cia. As gerações da família foram se sucedendo no trabalho e, então, em 1959, surge o Mercadorama - na Praça Tiradentes, onde até então havia o armazém da família (a sede da DCL está até hoje no imóvel). O nome, informa Diego no livro, foi ideia de José Luiz Demeterco, ou Zeca, filho de Pedro. "Zeca gostava muito de cinema", destaca. Na década de 50, ele foi a um cinema em São Paulo chamado Comodoro Cinerama, na Avenida São João, centro da capital paulista.
O Cinerama contava com três telas em curva, e era como se elas abraçassem os expectadores na sala do cinema. Zeca ficou tão encantado com a novidade que chegou a pensar em abrir uma sala em Curitiba. Desistiu da ideia mas não esqueceu o nome. Juntou então o sufixo 'rama' à palavra mercado para substituir o então Armazém Demeterco: Mercadorama.
Inovação
A vocação para a inovação estava no DNA da família. O Mercadorama foi o primeiro no Paraná e o segundo no Brasil a adotar o serviço de autoatendimento, em que os clientes poderiam circular pelo mercado e pegar diretamente da prateleira o produto que desejasse. "Houve quem reclamasse", narra Diego. Nas 15 entrevistas que fez com membros da família, descobriu, por exemplo, que quando o supermercado implantou esse modelo de atendimento, alguns clientes reclamaram - teve quem disse que, com a mudança, o mercado invertia os papéis e fazia com que o consumidor trabalhasse de graça para a rede.
Foi ainda um dos primeiros varejistas a instalar um açougue convencional dentro da loja, e a ter uma sessão dedicada ao hortifruti. Um dos primeiros também a implantar o código de barra nos produtos, nos primeiros anos da década de 90, o que acelerou o processo de compra. Foi ainda pioneiro na abertura das lojas aos domingos - e para o dia, criou o 'Domingo Legal', espaço destinado a brincadeira para crianças, com brinquedos instalados no terreno das lojas. "A tática fazia com que as unidades do Mercadorama se destacassem frente aos concorrentes", detalha o livro.
Outras ações que envolviam a população incluíam ainda carreatas e caminhadas de Natal e de Páscoa. Em algumas dessas ocasiões, crianças da família se fantasiavam de coelhos e de personagens ligados às duas festas para distribuir presentes e chocolates em comunidades carentes.
A venda
Na década de 90, o Mercadorama se tornou a maior rede de supermercados do estado. O grupo somava 12 lojas em Curitiba (chegou a ter 13) e um hipermercado em Maringá. No período, foi listado pela Associação Paranaense de Supermercados (Apras) como a maior rede supermercadista do Paraná. Uma pesquisa apontou que a marca era a preferida de 47,1% dos entrevistados.
A marca Mercadorama esteve presente na vida do curitibano até 2021 - naquele ano, oito unidades que ainda funcionavam na cidade foram substituídas pelo Nacional. Mas a rede deixou de fazer parte da vida dos Demeterco em 1998, quando a família decidiu que era hora de passar o varejo a outras mãos. O Grupo Sonae chegou ao Brasil em 1989 e passou a arrematar redes de supermercados regionais. O passo foi considerado correto pelos membros da família - naquele momento, os negócios eram dirigidos pela terceira geração. A família foi avisada pelo banco que havia recebido uma proposta de compra. Pelos requisitos estabelecidos, o grupo poderia comprar os negócios, mas não os imóveis. Tudo ocorreu como o definido.
A venda mexeu com a história da família, profundamente ligada ao Mercadorama. Lucas Demeterco, conta o livro, torcia para que o negócio não acontecesse. Tanto que pediu para se afastar do grupo quando as tratativas tiveram início. Roberto, filho de Zeca, trabalhou por seis meses entre o início das negociações e a assinatura da venda. "Com sua visão 'estrategista', ele analisou os cenários e manteve conversas constantes com os irmãos, filhos e sobrinhos sobre o que fazer e o que não fazer", narra a obra. Mesmo seu olhar estratégico não impediu que, assim como toda a família, sentisse o processo. Segundo a esposa, Cléa, após a venda ele não gostava de passar em frente às lojas em que trabalhou. O filho, Rodrigo, chorou ao se despedir das pessoas com quem trabalhou no Mercadorama.
Após a venda, a família criou a DCL. A empresa hoje é uma das maiores do sul do país em armazéns logísticos: são mais de 200 mil metros quadrados de área coberta do que é conhecido como área bruta locável (ABL). Administra também um shopping center em Maringá, onde funcionou o hipemercado Mercadorama. Cada lado da família seguiu por ramos diferentes de atividade - logística, hotelaria, importação, construção civil. "A família ainda é muito unida", informa Pedro.
O sotaque da terra
"O Mercadorama deixou uma saudosa lembrança na mente do consumidor paranaense. Uma empresa daqui, feita por paranaenses, que falava o sotaque da terra", destaca Pedro, neto de Zeca, sobrinho de Rui e filho de dona Leonor Demeterco. Pedro trabalhou no Mercadorama de 1985 até 1998, ano da venda. "Meu avô era o homem do Mercadorama. A gente vivia o dia a dia da empresa desde criança". Ele foi um dos pequenos Demeterco que se envolveu na produção das cestas de Natal.
Para ele, somado ao sotaque da terra presente no diálogo entre o Mercadorama e o público, o que conquistou o curitibano e estabeleceu essa relação estreita entre marca e população foi o fato de que a família fazia o varejo bem feito. "O Mercadorama nunca foi gourmet, era um bom supemercado", define, ao fazer referência a um certo tipo de modelo de atendimento surgido mais recentemente. "Era o supermercado do dia a dia", acrescenta. A relação de Pedro, hoje diretor da importadora Porto a Porto, com o varejo é algo tão forte que ele, ainda hoje, recolhe frutas e verduras que caem das gôndolas dos supermercados que costuma frequentar.
Um detalhe curioso: o CNPJ do Demeterco & Cia está ativo até hoje; é o mesmo utilizado pela DCL, que gere os negócios da família. Um caso raro de cadastro nacional com um século de existência e em plena atividade.
Linha do tempo: datas de inauguração das lojas Mercadorama
- 1914 - Praça Tiradentes
- 12/1966 - Comendador Araújo
- 07/1967 - Rua XV de Novembro
- 08/1970 - nova sede da Praça Tiradentes
- 06/1972 - Praça General Osório
- 04/1978 - Avenida Silva Jardim
- 09/1980 - Juvevê
- 03/1983 - Bigorrilho
- 10/1984 - Portão
- 05/1988 - Jardim das Américas
- 11/1992 - Maringá
- 09/1994 - Seminário
- 12/1995 - Boa Vista
- 05/1999 - Xaxim