Bom Gourmet
Menus de baixo desperdício: um olhar responsável da gastronomia para o mundo

O conceito de menu de baixo desperdício passa pelo respeito a todas as etapas da cadeia, da escolha racional dos itens e a busca por fornecedores ao aproveitamento dos alimentos de maneira integral. Bigstock
O nome é revelador: menus de baixo desperdício. São os que utilizam ao máximo todos os ingredientes, minimizando ou até eliminando a perda de alimentos. O que inclui, por exemplo, utilizar partes normalmente descartadas, como cascas, talos, folhas e até ossos. O conceito extrapola as paredes da cozinha: envolve toda a cadeia, da escolha dos ingredientes e fornecedores ao design dos pratos, com foco claro na sustentabilidade e na redução do impacto ambiental. Em 2014, o chef, restauranteur e finalista do MasterChef britânico Douglas McMaster inaugurou o restaurante Silo, em Brighton, na Inglaterra, e passou a ser apontado como pioneiro na adoção da abordagem.
McMaster implementou a filosofia zero waste (zero desperdício) ao eliminar totalmente o lixo do restaurante, desde a produção até a preparação dos alimentos. O conceito inspirou uma nova geração de chefs a repensar o modo como a comida é preparada e servida. E se tornou tendência pelo mundo. No Brasil, pesos pesados da gastronomia, como Alex Atala (D.O.M, Dalva e Dito, Bio), Bel Coelho (Clandestino), Ivan Ralston (Tuju), Rodrigo Oliveira (Mocotó, Balaio IMS) adotaram o conceito. Em Curitiba, as chefs Manu Buffara (Manu) e Gabriela de Carvalho (Quintana Gastronomia) são duas representantes fiéis da filosofia.
Em 2014, a chef Ana Rita Cohen criou a metodologia para a certificação Cozinha Saudável-Responsável (CSR), com objetivo de permitir que restaurantes, hotéis e outros estabelecimentos do setor de alimentos adotem práticas mais saudáveis e sustentáveis nos processos produtivo e operacional. Para obter a certificação, a metodologia avalia uma série de critérios, entre eles o uso de ingredientes frescos, locais e sazonais, preferência por alimentos orgânicos e não processados, utilização de métodos de cocção que preservem nutrientes e sejam saudáveis, e práticas sustentáveis, como redução de desperdício, reciclagem e uso eficiente de água e energia.
Levantamento da Unilever Food Solutions de 2023 voltado para o setor de alimentação fora do lar lança luz sobre o tema. Segundo o material, cerca de 15% dos insumos de um restaurante são desperdiçados. Equipamentos danificados, controle de estoque ineficiente, comida em excesso e falta de planejamento estão entre as razões para a perda de alimentos.
Dados da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO, na sigla do inglês) publicados pela BBC em agosto de 2020 fazem a seguinte analogia: se o desperdício de alimentos fosse um país, seria o terceiro maior emissor de gases de efeito estufa depois de Estados Unidos e China. Ainda segundo o órgão, um terço das emissões de gases do efeito estufa no mundo provém da agricultura, e 30% dos alimentos produzidos no planeta são desperdiçados — algo em torno de 1,8 bilhão de toneladas por ano. Se o mundo parasse de desperdiçar comida como um todo, seria possível eliminar 8% das emissões totais.
Respeito à natureza e aos produtores
"Desde o início da minha carreira, sempre fui atraída por cozinhas que respeitam a integralidade dos ingredientes", destaca Manu Buffara. Chef de um dos 21 restaurantes mais inovadores do mundo, segundo o World's 50 Best, ela entende que a prática de reduzir desperdício não é apenas uma questão de eficiência, mas um modo de expressar respeito à natureza e aos produtores. O implemento da prática no Manu teve e tem como objetivo também extrair o máximo de potencial de cada ingrediente, respeitando a origem e toda a cadeia produtiva.
Manu conta que o conceito zero waste está presente em todos os aspectos do processo criativo e operacional do restaurante que leva seu nome, eleito um dos 30 melhores do Paraná, novidade da edição deste ano do Prêmio Bom Gourmet. O trabalho colaborativo com pequenos produtores locais permite a ela utilizar ingredientes de forma integral, aproveitando ao máximo cada produto. "Um exemplo é o nosso prato de cenoura fermentada, em que utilizamos tanto a raiz quanto as folhas em preparos diferentes", explica. O uso de peixes também entra nessa lista, já que tudo é aproveitado, da carne às espinhas e à pele, utilizadas no preparo do caldo.
Um sistema de compostagem aplicado no Manu transforma resíduos orgânicos em nutrientes para as hortas comunitárias, fechando o ciclo de sustentabilidade. Na política de aquisição de ingredientes do restaurante, há a exigência de transparência e responsabilidade ambiental por parte dos fornecedores.
O respeito ao ingrediente é intrinsecamente ligado ao respeito à cadeia produtiva, avalia Manu. Evitar o desperdício é uma maneira evidente de honrar o trabalho dos agricultores, a qualidade do solo e os recursos naturais utilizados para cultivar esses alimentos, defende. "Essa abordagem não só valoriza o alimento, mas também fortalece o sistema alimentar como um todo, promovendo práticas mais justas e sustentáveis".
Manu já percebe um público consciente, que procura restaurantes que estejam conectados a determinados valores. "Muitos dos nossos clientes demonstram interesse em saber mais sobre a origem dos ingredientes e as práticas que adotamos. Eles apreciam a transparência que oferecemos", acrescenta.
Ciclo da vida
No seu Quintana Gastronomia, também eleito um dos 30 melhores restaurantes do estado no Prêmio Bom Gourmet 2024, a chef Gabriela de Carvalho defende que a ideia inclui o respeito pelo ingrediente, pelo produto, pelo agricultor e pela terra. "O ciclo da vida respeita todas as etapas e na gastronomia isso é assim também", afirma.
Há 16 anos, o Quintana trabalha com preparos que permitam utilizar os alimentos integralmente, incluindo talos e cascas. No almoço, o restaurante oferecia o arroz cateto misto com mix de sementes e folhas de brócolis, inserindo no consumo algo que poderia ser facilmente descartado.
"Trabalhamos com uma mesa gastronômica, na qual temos um colaborador específico para cuidar da gestão", conta Gabriela. "Ele fica atento no consumo e orienta a cozinha quanto à produção, e assim conseguimos produzir menores quantidades com mais qualidade, e também não gerar um desperdício de alimentos no fim do dia", detalha.
Gabriela foi apresentada à ideia de desperdício zero em um curso de hotelaria e gastronomia na Suíça, em 1998. A avaliação de um prato envolvia mais do que sabor, textura e qualidade; considerava também técnicas e processo de preparação, a lida com os alimentos. "A gente vive num país abundante [de recursos naturais], onde a relação com o desperdício ainda é natural, a gente joga muita coisa fora", reflete. Segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), o Brasil joga fora cerca de 30% dos alimentos produzidos no país.
A chef foi apresentada à ideia de desperdício zero em um curso de hotelaria e gastronomia na Suíça, em 1998. A avaliação de um prato envolvia mais do que sabor, textura e qualidade; considerava também técnicas e processo de preparação, a lida com os alimentos. "A gente vive num país abundante [de recursos naturais], onde a relação com o desperdício ainda é natural, a gente joga muita coisa fora", reflete. "Outros países, com menor diversidade, já tem um cuidado diferenciado", constata.
A temporada que passou na China, com mais de um bilhão de habitantes, foi uma revelação necessária. Em maio de 2021, o país aprovou uma lei para tentar reduzir o desperdício de alimentos. A legislação, que entre outras coisas proibiu as famosas competições de comida, autoriza os restaurantes a cobrarem uma taxa do cliente que deixar uma quantidade considerada excessiva ao final das refeições. E estabelecimentos que induzem ou enganam consumidores para que comprem quantidades exageradas de comida correm o risco de serem multados em um valor de até US$ 1.540.
"No Quintana, a gente trabalha com várias práticas de gestão de resíduos. Nosso molho de pimenta é feito com casca de tomate, a gente utiliza todos os caules de brócolis para fazer cuscuz vegano, as folhosas da couve-flor para ser nossa couve, as folhas de beterraba para saladas mais ricas", detalha.
WasteWatch
Um exemplo do envolvimento de representantes do setor de alimentação fora do lar com o conceito de redução do desperdício é o WasteWatch, projeto global da Sodexo, uma das maiores companhias de gestão de restaurantes do mundo, que estabeleceu a meta de reduzir em 50% o volume de perdas, sobras e resíduos de alimentos nas operações da marca até 2025.
Pelo projeto, trazido ao Brasil pela Sodexo-on site, as equipes da empresa conseguem, por exemplo, monitorar a geração de resíduos como cascas, talos, sementes, por exemplo. Isso permite que chefs e cozinheiros adotem estratégias para aproveitar os ingredientes de forma integral. E o que não pode ser aproveitado para o consumo é direcionado para compostagem ou biodigestores – sobras dos pratos e do que foi para a área de exposição e não pode mais ser reutilizado.
O WasteWatch entende que o aproveitamento integral dos alimentos começa já no momento da compra dos ingredientes. Ao aproveitar o insumo por completo, os ingredientes rendem mais, o que por consequência, reduz o custo na hora da compra. Isso aumenta a disponibilidade e oferta de alimentos. O programa realiza também ações de conscientização com funcionários e consumidores da marca sobre a importância de adotar atitudes que evitem o desperdício.
Em números, o projeto representa:
· 911 toneladas evitadas de desperdício total
· 911 toneladas evitadas de desperdício total
· 1,7 milhão de refeições poupadas de desperdício
· As refeições equivalem a redução de 30% de CO²
· 1210 restaurantes com o programa implantado (automatizado e manuais)