Bom Gourmet
Da infância no campo à formação na Itália: conheça a trajetória da premiada Manu Buffara
Há dois dias da reabertura do Restaurante Manu (no dia 1º de outubro), o salão recebia um vaivém de prestadores de serviços, devidamente paramentados devido à pandemia. Enquanto isso, na cozinha, como uma maestrina, afinava a orquestra, composta por um staff que se movimentava agilmente para fazer os últimos testes com o novo menu Do Campo ao Mar, desenhando para a nova fase do restaurante, que ficou sete meses fechado durante a quarentena.
Depois de passar como um furacão pelo coração da casa, chegou a nossa vez de receber toda a atenção de Manu, que enche seus olhos de brilho quando fala de gastronomia, seu grande amor, hoje materializado no renovado Manu e no “filho caçula”, o Manuzita.
Eleita a chef em ascensão no The Best Chefs Award, e, de quebra, alçada à 55ª posição na lista dos 100 melhores chefs do mundo na mesma disputa. Manu é de um despojamento que passa a quilômetros de qualquer deslumbre. “O sucesso nos dá um palco para que possamos servir de exemplo para as pessoas, o que traz também responsabilidade”, afirma a chef, cujo restaurante figura na 42ª posição na lista do Latin America's Award 50 Best Restaurants e que no ano que vem inaugura o Ella, em Nova York.
Para a chef, o reconhecimento representa a satisfação de estar levando não apenas o Paraná, mas também a região Sul para os prêmios internacionais, que sempre ficaram concentrados no eixo Rio-São Paulo quando se trata de Brasil. “Fico muito honrada, também, pelo fato de ser mulher, já que a alta cozinha sempre foi muito masculina. É muito bom poder fazer com que as pessoas entendam melhor e se reconectem com o alimento que a gente leva à boca e reforcem o respeito ao ato de comer”, acredita.
O reconhecimento internacional também rendeu a ela convites para integrar júris como o do San Pellegrino Young Chef, que destaca os novos talentos da gastronomia, e do Basque Culinary World Prize, considerado o uma espécie de Nobel da gastronomia, onde passou a ocupar uma cadeira fixa no lugar de Alex Atala. O convite surgiu por indicação do próprio comandante do premiadíssimo D.O.M. (duas estrelas Michelin), o nome de maior expressão da gastronomia brasileira.
O chef de fama internacional, por sinal, acabou se tornando um grande amigo de Manu, “quase um irmão”, como ela mesma gosta de dizer. “É muito legal o que vem acontecendo na minha vida nos últimos três anos e agradeço muito ao Alex que sempre me ajudou muito e me apoiou para eu ir pelo caminho certo nas tomadas de decisões”, diz.
Não à toa, há uma edição do livro D.O.M. – Redescobrindo Ingredientes Brasileiro, deitado sobre a estante no salão do restaurante, o que só reforça o status de referência que Atala tem na vida de Manu, muito em função da afeição da dupla pela cozinha que prestigia a matéria-prima local, que se transforma em arte por meio da alquimia gastronômica. É justamente na valorização do que vem diretamente do produtor que se encontra a identidade da chef, o que tem muito a ver com seu passado.
Percurso
Quem vê a chef paranaense com mais prestígio internacional comandando a sua cozinha com tanta desenvoltura não imagina que, quando garota, sua rotina incluía andar descalça, subir em pés de ameixa e de goiaba, andar a cavalo e até mesmo tirar o leite da teta da vaca. “Já peguei bicho-de-pé, carrapato, bicho geográfico e tudo o que você pode imaginar, pois tive uma infância muito livre”, relembra.
Nascida em Maringá, a 400 quilômetros de Curitiba, Manu foi criada na cidade, mas nos finais de semana vivia uma autêntica vida no campo nas terras o pai, agricultor. Foi daí, certamente, que foram plantadas as raízes da chef no apreço à terra e a tudo que é proveniente dela. “Meu pai (Eduardo) sempre me passou isso, da importância do produto, do solo, do clima, do sol, da água. Sempre tive esse conhecimento devido à minha criação, muito mais pé sujo do que piá de prédio”, brinca, em referência ao jeito curitibano de chamar as crianças criadas dentro de apartamentos.
Do lado materno, veio a influência do mar e da relação próxima com pequenos produtores e pescadores, especialmente pelo fato de seus avós morarem em Paranaguá, cidade no litoral paranaense. “Meu avô sempre foi do tipo que frequenta feiras e mercados e sempre prezou muito por conhecer os fornecedores e a origem dos produtos. Foi em Paranaguá que também aprendi a comer gemada com ostra, e feijão preto com marisco. Minha avó, Lelinha, sempre foi boa de fogão e lembro de fartos almoços preparados por ela”, afirma Manu.
No entanto, engana-se quem pensa que Manu, com tantas referências ligadas ao alimento, cresceu com a certeza de que queria ser chef. Aos 16 anos, quando se mudou com a mãe para Curitiba, os rompantes de rebeldia ocasionados pela mudança de cidade a fizeram ganhar o mundo. Depois de um breve intercâmbio na Nova Zelândia, ela passou no vestibular para jornalismo, que escolheu devido ao gosto pela leitura e pelas humanidades. Mas, durante o curso, que ela levou até o fim, Manu partiu para outras experiências no exterior, que acabaram por definir o seu futuro na cozinha. No final das contas, a comunicação da chef não seria por meio das palavras, mas sim, pela comida.
Pelo mundo
A falta de neve na estação de esqui nos Estados Unidos, onde ela trabalharia, terminou por colocá-la na rotina de um hotel. “Acabei no serviço de quarto e gostava de montar as mesas com todo o cuidado e também de dar muito pitaco na cozinha. Até que o chef me chamou para trabalhar com ele, de tanto que me metia. Um dia me deram uma caixa de frango para desossar e quebrei todos os ossos e disse: está pronto. E não tinha desossado nada. Mas aprendi muito nessa primeira experiência”, diverte-se.
Depois de uma curta passagem pelo Alasca, onde também se arriscou na cozinha e conheceu de perto a rotina da pesca na região, Manu pegou o dinheiro que tinha juntado e foi levar uma vida de mochileira por seis meses na Europa, onde, vez ou outra, fazia trabalhos como fritadeira. “Também tive a oportunidade de ir a alguns bons restaurantes e voltei ao Brasil já com o desejo de estudar gastronomia. Cursei hotelaria no Centro Europeu, cada vez com mais vontade de cozinhar, mas ainda sem muita fé por parte dos meus pais”.
A certeza de que sua vocação era na cozinha só veio mesmo após uma viagem à Itália, incentivada pela avó Lelinha. “Você tem que trabalhar nos fogões. Ver como é realmente o dia a dia em uma cozinha de verdade para ter certeza”, disse a matriarca à neta. E lá foi Manu estudar gastronomia no conceituado Italian Culinary Institute for Foreigners (ICIF), com direito a estágio no três estrelas Michelin Da Vittorio, em Brusaporto, Bergamo, no Norte da Itália. Foi lá que chegou às mãos da chef uma edição da revista espanhola Apicius, com um especial sobre o chef dinamarquês René Redzepi, a cabeça pensante do premiado Noma, hoje com duas estrelas Michelin.
“Fiquei encantada com essa coisa que o René tinha com o produto, com a natureza e tudo mais. Arrisquei a sorte, mandei um e-mail e pedi para fazer um estágio lá. Nem existia essa coisa de estágio por lá. Me chamaram até de louca no e-mail, mas deu certo”, conta, aos risos. “No final do estágio, fui premiada com jantares nos melhores restaurantes de Kopenhagen. Aprendi e aproveitei muito.”
De volta ao Brasil, com apenas 22 anos, ela assumiu a responsabilidade de tocar o restaurante do Grand Hotel Rayon, onde ficou por nada menos que cinco anos, período em que também assumiu a responsabilidade dos restaurantes da rede Deville. “Eu era muito imatura e quando não se sabe liderar, a gente usa o grito. Depois, fui aprendendo a ser humana e a entender melhor as diferenças. Entrei como uma cozinheira e saí como uma chef, alguém que inspira, e não causa medo. Foi outro grande aprendizado”.
Em 2011, a irrequieta Manu sentiu o desejo de alçar voos mais altos e criar algo seu, da concepção à execução, com o conceito de menu degustação, que ela havia conhecido na Europa. A oportunidade de comprar um espaço onde já funcionava um restaurante, que estava sendo desativado, na Alameda Dom Pedro II, era o que faltava para o sonho de ter o próprio restaurante se tornar real.
“Muita gente me desestimulou alegando que Curitiba não se adaptaria a esse conceito e, de fato, os dois primeiros anos foram difíceis, mas acabei pegando um público muito legal. Meu cliente sabe que no Manu ele vai pagar pela experiência, pela criatividade e pela transformação de ingredientes”, diz.
Identidade
As experiências preliminares da chef serviram para ajudar a construir o seu repertório, mas foi nas próprias raízes que ela encontrou o seu lugar, em definitivo, a partir da afinidade com os ingredientes brasileiros, tirados diretamente do campo pelos pequenos produtores. “Quando você assume uma identidade, são histórias que são contadas por meio do menu. Então, eu aprendi a escutar muito, especialmente os produtores. O produto é uma coisa muito importante no processo, porque é a partir deles que surgem os pratos. Tem que olhar além do produto que está ali, ir além do convencional”, acredita.
Manu encontrou o seu caminho no que define como uma cozinha brasileira, regional e local, mas fora da caixa. Para construir o conceito que move o seu Manu, ela se viu instigada a se reconectar consigo, que trouxe todo o sentido para a sua cozinha autoral. “Sempre acreditei no meu trabalho, no meu potencial, nos ingredientes. Transformar o simples é muito mais difícil que usar uma trufa, por exemplo, que até com ovo frito fica incrível. Usar o produto brasileiro, entender a sua história, de onde você vem, a sua cultura, a sua família, faz parte dessa construção autoral”, acredita.
Fiel a suas crenças nos produtos de origem e na importância de valorizar a terra que dá o alimento, a chef, o marido e as duas filhas, Maria e Helena, há um ano vivem em um condomínio de casas com uma grande área verde em anexo em Pinhais, na Região Metropolitana de Curitiba. “Temos pés de frutas e uma horta de onde sai parte dos produtos que usamos no restaurante, como flores comestíveis, capim-limão, melissa, trevo, butiá e limão-rosa”, conta.
Na vizinhança, ela convive de perto com pequenos produtores orgânicos, que viraram fornecedores. “O leite que usamos para fazer manteiga, coalhada, requeijão e nata vem da mesma vaca, a Odara, que é de um produtor da região”, revela. Aliás, volta e meia, ao lado das filhas, ela volta aos tempos de garota e acompanha a ordenha a vaca. “As meninas esperam com a caneca já com o cacau e o leite já sai espumado”, diverte-se.
A pegada sustentável também está em diversos detalhes do restaurante. Na impressão dos cardápios do Manu, feitos a partir de cascas de cebola e folha de bananeira, no reaproveitamento das raízes dos vegetais, que são replantadas, no cuidado com a compostagem e na destinação correta dos materiais que podem ser reciclados.
Para os clientes levarem para a casa, Manu oferece vidros para serem reaproveitados com sementes dentro, com o poder simbólico que remete às raízes de um estilo de vida muito mais sustentável. Mais do que cativar os comensais com experiências gastronômicas, a chef deixa transparecer o desejo de deixar a sua marca como uma singela contribuição para a construção de um mundo melhor.