Histórias
Rene Seifert, o padeiro que não vende pão
"Ó, dá para escutar o som do pão. Tá ouvindo?", pergunta Rene Seifert, sorrindo, enquanto segura nas mãos um disco marrom-dourado de casca crocante envolto por uma luva de padeiro. Seu pão do campo acabou de sair do forno e ainda estala, aqui e ali, ao contato da massa quente com o ar fresco da manhã em Witmarsum, no município paranaense de Palmeira. "Isso aqui, sabe, é apaixonante. Acho que é por isso que eu faço pão toda semana."
Não há quem viva em Curitiba e região que goste de pães artesanais, daqueles feitos com fermentação natural e matéria-prima de origem, e não conheça Rene. Se não pessoalmente, alguma coisa deve ter ouvido falar sobre o professor de administração da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR).
O professor de 42 anos, natural da cidade gaúcha de Lajeado que, desde 2006, divide o ofício da sala de aula com o de padeiro. Não um padeiro convencional, disposto a vender cada fornada. Um padeiro que faz pães para compartilhar. E que ensina os outros a assar pão.
Em vez de trocá-los por dinheiro, Rene segue a lógica ancestral do campo: dá um produto seu e recebe outro em retribuição. É assim que mantém sua mesa do café da manhã com os queijos artesanais de Witmarsum, as geleias e a manteiga e até a faca que usa para cortar os salames caseiros de Porco Moura (criado ali mesmo, nos fundos do terreno).
Foi assim com a cerca branca de madeira que divide o quintal de sua casa, na colônia alemã a 60 km de Curitiba. E também com os dois cavalos que pastam logo ao lado. De vez em quando, seus pães são trocados por experiências, como refeições nos restaurantes dos amigos.
Entre eles, chefs premiados como Gabriela Carvalho, do Quintana, e Lênin Palhano, do Nomade. Muitas vezes pela cerveja artesanal de Samuel Cavalcanti, da Bodebrown. “É o que a gente chama de economia da dádiva. Dar, receber e retribuir."
Confira o vídeo que mostra a rotina de Rene e sua família:
A Casa de Saberes Artífices
Rene Seifert acredita que não há chance de existir uma sociedade melhor sem pensamento crítico e coletividade. "O mercado quer que você use só um dedo para apertar. Você compra a pizza, põe no microondas e aperta. Você coloca a cápsula de café na máquina e aperta. A mão está sendo reduzida a apertadora de botão", critica. "Para mim, fazer pão é, entre tantas razões, evitar que isso aconteça. É uma forma de protesto."
Naturalmente, a vocação de professor acabou traçando um caminho inevitável: repassar ao próximo o conhecimento que ganhava a cada nova receita de pão, de moagem de trigo, de levain. A primeira turma foi organizada em 2014, no porão de Cláudio Oliver, grande amigo de Rene e, ao lado do professor, um dos fundadores da ONG Casa da Videira.
Entre os pouco mais de 10 alunos, o então ativista e filósofo Goura Nataraj - hoje deputado estadual pelo PDT. Depois vieram aqueles que mantêm ritmado o movimento do pão artesanal em Curitiba.
"Dei aula para o Jorge Mariano [que trabalhou na padaria orgânica Maçã e hoje comanda a pizzaria Madá, do chef Beto Madalosso], para o Pedro Robell, da Casa Robell, e para o [Rodrigo] Santiago, da Chicago Bakery", relembra. Foi Rene, também, quem assou as primeiras fornadas e treinou as jovens da padaria anarquista da Casa da Videira, conhecida como Pão das Meninas.
Em vez de vender pães, Rene prefere vender cursos que ensinam o outro a fazer a própria massa e a entender a importância de usar uma farinha de trigo de qualidade. E sentir na boca o sabor de um pão feito com trigo paranaense, moído na hora do preparo. As aulas ocorrem uma vez por mês, num sábado, no galpão equipado com forno a lenha nos fundos de sua casa em Witmarsum.
As vagas são limitadas - não passam de 15 - e se esgotam com três meses de antecedência. "Vem gente de todo o Brasil", conta Vanessa Seifert, 40, esposa e parceira de aventuras. "Teve um casal que veio da Nova Zelândia, uma moça de Manaus. É sempre uma troca de experiências muito linda."
O casal também teve a ideia de criar um canal no YouTube, "O Pão da Casa", que soma mais de 100 mil inscritos. Mas o foco agora é em seu mais novo projeto: A Casa de Saberes Artífices. O objetivo é criar um espaço para compartilhar conhecimentos ancestrais sobre alimentação e outros processos artesanais. Da queijaria à panificação; da cutelaria ao trabalho com madeira.
“A ideia surgiu para disseminar o que um dia foi transmitido de geração para geração, através da fala e da prática constante”, explica Rene.
"Estamos com o projeto pronto e o terreno comprado. Falta o dinheiro para iniciar a obra". Segundo os cálculos, se mil pessoas comprarem seu curso online de panificação, a construção de três andares com vista para os Campos Gerais em Witmarsum pode começar a tomar forma.
"Estamos com o projeto pronto e o terreno comprado. Falta o dinheiro para iniciar a obra". Segundo os cálculos, se mil pessoas comprarem seu curso online de panificação, a construção de três andares com vista para os Campos Gerais em Witmarsum pode começar a tomar forma.
O curso é dividido em cinco módulos. Proporções e receitas, técnicas de sova e de fermentação são alguns dos temas ensinados, além de um bônus com três aulas sobre degustação, conservação de pães artesanais e dicas para assar pizza em casa. Mas o bom mesmo é a consultoria de um ano com Rene. “Vou ficar disponível para esclarecer dúvidas e dar conselhos”, conta o padeiro. As inscrições podem ser feitas no site.
O primeiro pão e a mudança para Witmarsum
Birmingham, Inglaterra, inverno de 2006. Fazia poucos meses que Rene chegara com Vanessa para ingressar em um doutorado em administração. Tempo suficiente para se desanimar com o jeito britânico de se viver. “Não tínhamos amigos, a comida era ruim, o dinheiro era contado e não tinha padaria. Do jeito que estava, era difícil a gente aguentar os quatro anos lá”, conta o professor.
Até que levou um chacoalhão de um amigo no Brasil. “Rene, por que você não para de reclamar pelo que não tem e começa a dar o que você quer receber?”. Pois bem. O intercambista desanimado escreveu um recado e estampou um mural da universidade. Era um convite para comer pipoca e tomar chá com ele e Vanessa em seu apartamento estudantil.
“Veio um casal da Turquia e um dos Estados Unidos. Na outra semana começou a vir mais gente, até que não cabia mais no apartamento”, relembra. Outro dia, se irritou quando percebeu o tanto de lixo que ele e a esposa estavam produzindo. “Era plástico o tempo todo! Até o pão vinha em embalagem plástica!”
Decidiu, então, fazer uma versão caseira de improviso. Até ali, ele nunca tinha assado um pão na vida. Mas lembrava, com carinho, de quando era criança e ajudava o pai a sovar a massa em casa. Deu certo.
“Quando eu tirei o pão do forno, pensei: ‘nossa, eu fiz isso com as mãos. Sem máquina, sem nada. E ficou melhor do que o do supermercado’. De repente, eu já estava fazendo dois, três pães por semana, e distribuía para os amigos”, conta Rene.
A brincadeira de fim de semana seguiu firme mesmo quando o casal voltou ao Brasil em 2010 com um integrante a mais na família, o pequeno Oliver (hoje com 9 anos). E depois com o caçula Thomas, de 6. Só mudou o dia da semana em que a casa toda cheira a pão, sempre às sextas.
"Mantivemos a tradição porque, em 2014, eu preparava o máximo possível e assava num forno turbo emprestado de um colega da universidade", conta. O dia disponível era sempre sexta-feira. Rene e Vanessa enchiam o carro de massa crua e atravessavam a cidade por uma hora. "O pão ia crescendo durante o trajeto", relembra Vanessa, rindo.
A mudança para Witmarsum aconteceu nessa época. Foi quando Rene conseguiu entrelaçar tudo aquilo que ensina em sala de aula com a vida crua do campo. "Existe uma coisa chamada virtude da não eficiência, que é o contrário do que a indústria quer", explica ele. "O artesão abre mão da eficiência de produzir o máximo possível para ganhar qualidade. Se você correr o risco e testar, você descobre, adapta. Abre mão de muitas coisas, também. Mas faz isso para descobrir outras virtudes."