Bom Gourmet
“Eu não faria coquetelaria se não fosse pelo Brasil”
Diga a verdade, você provavelmente conhece carqueja, catuaba ou mastruz... Talvez, até já provou algum chá ou mesmo bebeu uma garrafada (as infusões medicinais tradicionais do Brasil) com alguns desse ingredientes. Mas já bebeu um drink com algum deles? Ou imaginou ervas tão próprias da nossa cultura sendo usadas como base de novas bebidas?
É esse cruzamento entre a medicina popular (essa feita de garrafadas, lambedores e até benzedeiras) e a coquetelaria que a pesquisadora, mixologista e jornalista Néli Pereira propõe em seu livro Da Botica ao Boteco (editora Companhia de Mesa). Para tanto, a escritora foi investigar o perfil de sabor de ingredientes muito próprios da cultura brasileira. Néli está em Curitiba neste fim de semana para o lançamento da obra, que ocorrerá durante o Festival Tutano, no Museu Oscar Niemeyer.
Em entrevista ao Bom Gourmet, a autora falou mais sobre o Da Botica ao Boteco, seu trabalho de pesquisa e a mixologia nacional.
Deguste!
Néli, conta um pouco mais sobre o Da Botica ao Boteco, livro que você veio lançar aqui em Curitiba?
No meu livro Da Botica ao Boteco, eu falo de ingredientes que estão no universo da botica popular brasileira, mas que a gente não conhece muito do sabor deles. Não sabemos, por exemplo, que a catuaba é mais tânica, que o mastruz é adocicado ou mesmo que a jurubeba tem muito umami. Mas, o que eu fui entendendo, e que mostro no livro, é que para além dos sabores, eu precisava também trazer os saberes do Brasil. Para que a gente pudesse, assim, brindar com e pelo Brasil.
E como é a recepção do público, e do mercado, a essa proposta de uma coquetelaria com ingredientes brasileiros?
Quando eu comecei esse trabalho, vi muita gente torcendo o nariz, olhando com desdém. Em paralelo a esse olhar de desdém, tem também um olhar muito tropicalizado, de que tudo que fala de Brasil e da coquetelaria daqui precisa ser superfrutado, tropical, com melancias e abacaxis. Enquanto, na verdade, a nossa coquetelaria tem muito mais amargo. Mas, o que eu percebo, é que essas duas situações vêm mudando. Percebo que as pessoas estão mais abertas, principalmente os mais jovens, a olhar para esses ingredientes nacionais com grande potencial.
E, para além da pesquisa, como é a coquetelaria que você faz, Néli?
É uma coquetelaria de baixa intervenção. Porque o coquetel que eu preparo não é sobre mim, é sobre os ingredientes com que eu trabalho. Eu sempre vou mostrar o ingrediente. Então, por exemplo, se eu pego um Cogumelo Yanomame e misturo a um Vermute, eu não vou esconder o sabor desse cogumelo misturando outros oito ingredientes na bebida só para mostrar como eu sei combinar os sabores. Eu sempre vou mostrar o ingrediente. Então, eu diria isso, que é uma coquetelaria mais simples, de baixa intervenção.
Néli, no livro Da Botica ao Boteco, você compartilha diversas receitas de coqueteis autorais. Como foi para você revelar esses segredos de mixologista?
Eu não faria coquetelaria se não fosse pelo Brasil. Porque eu não tenho o menor interesse de misturar álcool com outros ingredientes se não for para mostrar o Brasil. Na verdade, eu só faço se for pelo Brasil. E dentro dessa minha trajetória o que importa muito é compartilhar conhecimento. Porque não faria sentido ficar guardando receitas para mim se o que eu quero é propagar o Brasil e os nossos ingredientes. Claro, eu não vou dizer que todo mundo tem de fazer coquetelaria exclusivamente brasileira. Mas eu defendo que os nossos ingredientes podem e devem fazer parte da coquetelaria que fazemos aqui no Brasil.
Como isso, você pode explicar um pouco melhor?
Vou usar como exemplo a gastronomia, onde você tem chefs que trabalham de forma muito intensa com ingredientes e cozinha brasileira, mas você também tem chefs que usam ingredientes brasileiros numa comida mais oriental ou mais mediterrânea, por exemplo. No coquetel você também vai ter isso. As pessoas começaram a entender que, embora você tenha uma coquetelaria brasileira, muito mais gente pode encontrar caminhos para trabalhar dentro desse universo. O que eu acho que não pode acontecer é a gente só trabalhar com ingredientes de fora, com grapefruit, com yuzu, e desconhecer os sabores que temos aqui. Abrir os olhos para isso é ampliar repertório, não reduzir. E eu vejo quem trabalha na área mais curioso em relação a isso, principalmene a nova geração.
Néli, dizem que existem muitos brasis em um Brasil. Isso porque temos uma diversidade de paisagens e cultural. Mesmo assim, você diria que tem um ingrediente da botica que vai ao boteco e que é a cara do Brasil?
Não tem um ingrediente, mas existem vários que nos circundam e que a gente poderia e deveria dar mais atenção. A catuaba, por exempo, que gosto ela tem? Tem gente que se surpreende quando descobre que catuaba é uma árvore esguia, com a seiva escarlate e de um sabor tânico. A jurubeba é outro exemplo. Ela dá em todo lugar do Brasil. É uma planta da família do tomate e do pimentão. Ela tem umami, tanino e também um dulçor… Na minha pesquisa, eu trago 46 receitas e ressalto 15 ingredientes.
Um pouco antes você falou sobre gastronomia. Esses ingredientes e os sabores que você apresenta no livro Da Botica ao Boteco também podem ir para a cozinha?
Eu estive recentemente em um programa de TV onde apresentei algumas dessas ervas e ingredientes. Um dos que levei foi o jucá, que é uma baga que tem um sabor doce, um gosto que lembra açúcar e caramelo. A Manu (Buffara, chef curitibana premiada internacionalmente) não conhecia e ficou muito interessada em levar para uma sobremesa. Recentemente, a chef Helena Rizzo fez uma sobremesa que chama Garrafada. Ela é toda feita com ingredientes da Mata Atlântica e, inclusive, é apresentada como uma garrafada. Então, veja, esses cruzos são sim possíveis e são grandiosos.
Bom Néli, voltando para o balcão, qual drink/coquetel você diria que é a cara do Brasil?
A capirinha. Mas é importante falar o seguinte: macerem o limão na hora de fazer caipirinha. A caipirinha não é batida na coqueteleira. O limão tem de ser macerado e misturado com o açúcar, gelo e cachaça. Assim se faz uma caipirinha muito potente em sabor e deliciosa. Claro, temos outros clássicos, como o Rabo de Galo e o Macunaíma, criado no bar Boca de Ouro e que mistura cachaça, limão e fernet. Mas a caipirina está de norte a sul do Brasil, está nos bares, nos churrascos, nos almoços em família...