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Em carta aberta, Vinícola Aurora pede desculpas e fala em mudar práticas após denúncia de trabalho análogo à escravidão
A Vinícola Aurora, uma das grandes empresas de Bento Gonçalves (RS) envolvidas no caso de trabalho análogo à escravidão na região, divulgou uma carta aberta à sociedade brasileiro nesta sexta-feira (3). No texto, a empresa se desculpa pelos fatos ocorridos e fala em mudanças nas suas dinâmicas trabalhistas.
A carta da Vinícola Aurora vem no momento em que o caso de Bento Gonçalves passa a ganhar contornos muito mais políticos do que policiais. Declarações polêmicas e xenofóbicas desta semana complicaram ainda mais a imagem das empresas produtoras de vinho na região.
No começo da semana, o Centro da Indústria, Comércio e Serviços de Bento Gonçalves (CIC-BG) emitiu uma nota em que relaciona o uso de trabalho análogo à escravidão na colheita de uvas a políticas federais de distribuição de renda, como o Bolsa Família.
"Situações como esta, infelizmente, estão também relacionadas a um problema que há muito tempo vem sendo enfatizado e trabalhado pelo CIC-BG e Poder Público local: a falta de mão-de-obra e a necessidade de investir em projetos e iniciativas que permitam minimizar este grande problema. Há uma larga parcela da população com plenas condições produtivas e que, mesmo assim, encontra-se inativa, sobrevivendo através de um sistema assistencialista que nada tem de salutar para a sociedade", diz um dos trechos da nota.
Também nesta semana, um vereador de Caxia do Sul, na mesma região de Bento Gonçalves, fez um discurso em que aconselha os produtores locais a não contratarem trabalhadores da Bahia ou outros estados do Nordeste. “Agricultores, produtores vou dar um conselho para vocês: não contratem mais aquela gente lá de cima”, disse.
Em sua fala, Sandro Fantinel (Patriota) ainda aconselha os empresários a darem preferência aos argentinos porque "são limpos, trabalhadores, corretos, cumprem o horário, mantém a casa limpa e no dia de ir embora ainda agradecem o patrão".
O discurso continuou com um ataque aos trabalhadores baianos. "Agora com os baianos, que a única cultura que eles têm é viver na praia tocando tambor, era normal que fosse ter esse tipo de problema." A Câmara de Vereadores de Caxias do Sul abriu um processo de cassação contra o vereador.
Confira abaixo a carta aberta da Vinícola Aurora à sociedade brasileira:
No início do século passado, algumas famílias italianas cruzaram o Atlântico à procura de dias melhores. Nas malas, poucas peças de roupa, uma ou outra foto desbotada, muita coragem e um sonho: refazer a vida em um país estranho. A Vinícola Aurora nasceu desse sonho. Desse sonho e de muito trabalho.
O trabalho que sempre correu nas veias de nossos fundadores logo se misturou a esta terra, espalhou-se por entre os parreirais, nutriu cada planta com um inegociável senso de respeito pelas mãos que a semearam, que a colheram, que a ajudaram a ser da uva, o vinho, e a ganhar o mundo, reconhecimentos e, mais importante, ganhar um lugar à mesa e no coração dos brasileiros.
Os recentes acontecimentos envolvendo nossa relação com a empresa Fênix nos envergonham profundamente. Envergonham e enfurecem. Aprendemos com aqueles que vieram antes que, sem trabalho, nada seríamos. O trabalho é sagrado. Trair esse princípio seria trair a nossa história e trair a nós mesmos. Entretanto, ainda que de forma involuntária, sentimos como se fora isso que fizemos.
Primeiramente, gostaríamos de apresentar nossas mais sinceras desculpas aos trabalhadores vitimados pela situação. Ninguém mais do que eles trazem, nos ombros curados pelo Sol, o peso de uma prática intolerável, ontem, hoje e sempre. A testa daqueles que fazem o Brasil acontecer, todos os dias, às custas do seu suor honesto, deveria estar sempre erguida, orgulhosa, e nunca subjugada pela ganância de uns poucos. Repudiamos isso com todas as nossas forças.
Em seguida, sentimo-nos obrigados a estender essas desculpas ao povo brasileiro como um todo, não apenas como discurso, mas como prática. Já cometemos erros, mas temos o compromisso de não repeti-los. Como empresa, garantimos que a atenção a um tema que nos é tão relevante será redobrada, práticas serão revistas, e todas as garantias para que um episódio indesculpável como esse não venha a se repetir serão tomadas. Temos um longo caminho pela frente, mas todo longo caminho começa com um primeiro passo, e ele é dado agora.
Desde já estamos trabalhando em um programa robusto que deve implementar mudanças substanciais nas dinâmicas da Vinícola Aurora. Essas mudanças devem qualificar não apenas a nossa relação com todos os parceiros, na busca de obtermos controle sobre os processos como um todo, mas também nas práticas e políticas internas da empresa e quanto ao nosso papel enquanto agente econômico, social e cultural de destaque em nossa região e a responsabilidade que advém disso.
Acreditamos nos valores que queremos reafirmar para nos tornarmos dignos da confiança do Brasil mais uma vez e espalhar o seu nome aos quatro cantos do mundo, em cores vivas e pujantes e não em notas cinzas como a que atravessamos neste momento. Esperamos sair do outro lado como uma empresa melhor. Estamos aqui, com a mente e o coração abertos, a começar tudo de novo, se for preciso, como fizeram nossos antepassados ao aqui desembarcarem. Apenas, ao contrário deles, que eram pura incerteza sobre uma terra estranha, fazemos isso com a convicção de ser este um país maravilhoso que merece o melhor de nós.
Trabalho não nos assusta. Deveria ser sempre uma fonte de alegria e realização. E a Vinícola Aurora não medirá esforços para colaborar com a construção de um mundo em que o respeito, o orgulho e a realização façam parte da vida de cada trabalhador.
Sinceramente, Cooperativa Vinícola Aurora