Bom Gourmet
Culinária italiana à brasileira: 150 anos de imigração e o nosso jeito de degustar a Itália
A culinária italiana foi ressignificada ao longo dos 150 anos de imigração no Brasil e consolidou novos traços culturais cultivados por descendentes. divulgação
Os historiadores da alimentação dizem que a culinária é o último elo a manter uma cultura em um local. O tipo de vestimenta, a música e até o idioma podem se perder antes, mas a memória pautada pelo que compõe o prato e a mesa permanece por mais tempo. Existem diversos elos que mantêm a influência da Itália no Brasil — cuja imigração completa 150 anos este ano —, mas é seguro dizer que a gastronomia é o mais forte deles. Tradicional, mas não estática, a culinária italiana se transformou.
Combinando a memória afetiva dos imigrantes, a vontade de recriar pratos consumidos na Itália e as possibilidades relacionadas ao acesso a ingredientes, nasceram pratos carregados de sabor e de novos significados. É o caso do frango com polenta, do risoto de frango com arroz amarelo, da polenta frita e da salada de almeirão com bacon e vinagre de vinho tinto, consumidos em grandes quantidades em restaurantes em Santa Felicidade.
Para escrever um livro sobre a gastronomia de Santa Felicidade e suas raízes, a antropóloga Maria Fernanda Campelo Maranhão entrevistou imigrantes italianos do bairro e os fundadores de alguns dos restaurantes mais conhecidos do local, destino certo tanto para turistas quanto para curitibanos bons de garfo. “Com base em estudos anteriores, formulei perguntas para os meus entrevistados. Era interessante que nas entrevistas, mesmo quando eram de manhã, sempre me ofereciam polenta e às vezes vinho, já
demonstrando essa cultura alimentar particular”, relembra.
demonstrando essa cultura alimentar particular”, relembra.
Durante a pesquisa, ela descobriu como alguns pratos foram parar nos cardápios de Santa Felicidade. O frango a passarinho é uma variação da passarinhada frita preparada com sálvia. Em vez dos passarinhos, que nos anos 1950 eram caçados pelos descendentes de italianos, entrou o frango em pedaços com tempero similar e molho.
Já a polenta, típica da região do Vêneto, era base da alimentação dos colonos, servida de manhã, à tarde e à noite, em diferentes formas. Se na Itália ela só existe em sua consistência inicial, mole e fumegante, ou, depois de endurecida, brustolada na chapa quente, no Brasil ela foi parar na fritura por imersão. Não há consenso sobre a origem da prática, mas uma provável causa é o aproveitamento da polenta endurecida.
O risoto de frango com molho de tomate, outra iguaria ítalo-brasileira, deriva do risoto branco de leite com cogumelos. Na falta dos ingredientes utilizados na Itália, os colonos adaptaram com elementos locais. O chef Délio Canabrava ressalta a substituição do arroz arbório pelo amarelo, considerando a inexistência ou dificuldade de acessar o primeiro ingrediente nos tempos antigos: “E aí, virou um prato novo. Essas adaptações são positivas, o importante é que se faça. A técnica também é importante, o
modo de cozinhar, de conduzir a cozinha”.
modo de cozinhar, de conduzir a cozinha”.
Transformações e manutenções
Délio foi o primeiro brasileiro condecorado com a comenda Chef Patron da Federazione Italiana Cuochi (FIC), órgão do governo da Itália que reconhece chefs que formam bons cozinheiros de gastronomia italiana. Em uma cultura que é reconhecidamente resistente a adaptações, Délio nota que, no Brasil, a gastronomia do país europeu passou por mudanças que vão além da composição dos pratos. Elas foram também relacionadas à estrutura e aos costumes.
O primeiro ponto, de acordo com ele, a ser adaptado em terras tropicais foi a sequência de pratos da forma como é servida na Itália. Por lá, uma refeição conta com ao menos cinco etapas: o antipasto, prato de aperitivo que pode conter queijos, azeitona, verduras e pães; o primo piatto, primeiro prato, em geral composto por massa com molho, risoto ou até um brodo (caldo); o secondo piatto, segundo prato, no qual entra em cena a proteína animal; o contorno, que pode ser uma salada ou verduras cozidas; e a
sobremesa. Isso sem contar o digestivo, um café ou licor.
sobremesa. Isso sem contar o digestivo, um café ou licor.
No Brasil, esse costume precisou ser condensado, visto que o tempo de uma refeição no país é, em geral, mais curto do que na Itália. Há uma sequência de três pratos, juntando salada, massa e carne no mesmo prato. A abundância de carne bovina encontrada no Brasil também torna sua presença nos pratos ítalo-brasileiros mais comum, não só no prato principal como até em saladas. O contrário acontece na Itália, onde o insumo é mais difícil de ser acessado. Por isso, pratos vegetarianos são tradicionais lá, como a berinjela à milanesa e massas com abobrinha.
Outra característica muito forte lá e que não necessariamente acontece aqui é a tradição dos pratos e ingredientes quilômetro zero. Se uma pessoa come determinado tipo de prato, ou se nele é utilizado determinado queijo da região da Emília-Romanha, por exemplo, essa pessoa não vai encontrar o mesmo sendo servido na Toscana, que é geograficamente ao lado. Ou seja, não há tráfego ou compartilhamento de receitas ou ingredientes entre regiões, mesmo que sejam próximas. Cada local conta com composições únicas que caracterizam sua gastronomia.
A essência da culinária italiana é a preocupação com a qualidade dos ingredientes. Erminia Caliceti, responsável pelo restaurante Caliceti di Bologna e uma espécie de embaixadora da gastronomia italiana em Curitiba, conta que, desde a abertura do espaço, em 1972, a família utiliza, em seus recheios e molhos, a ricota fornecida pelo mesmo pequeno produtor, por valorizar a qualidade daquele insumo. Ela também lembra como era difícil, no início, encontrar itens básicos para alguns pratos italianos, como o salsão, fundamental em um molho à bolonhesa tradicional. “Sentimos uma lacuna de ingredientes originais italianos, que não são iguais aos “tipo italianos” que vemos aqui. São sabores fortes de que sentimos falta”, conta.
Délio destaca que, hoje em dia, utilizar ingredientes verdadeiramente italianos muitas vezes vai contra princípios ambientais e até mesmo econômicos. “Um exemplo é o pinoli, usado na receita original de pesto. Antes era difícil acessar aqui porque não tinha importação. Agora, mesmo com a importação, não se justifica pelo preço, que é muito alto”, explica. Como se trata da manutenção de restaurantes, a viabilidade econômica dos insumos é um ponto essencial a ser considerado.
Paladar brasileiro, sabores italianos
Por acompanhar o setor gastronômico há décadas, desde quando era a mãe quem conduzia o restaurante, Erminia presenciou mudanças significativas no comportamento dos consumidores de comida italiana local ao longo dos anos. Uma delas foi a percepção de que as pessoas passaram a apreciar as massas al dente, o ponto correto de cocção de massas, e não mais moles, como os clientes preferiam no início.
Para falar da segunda mudança, ela lembra de um particolare, história vivida pela própria mãe no salão. Como as massas produzidas, como o fettuccine e o tagliarini, são muito longas, a matriarca viu algo que lhe causou tristeza: pessoas cortando o macarrão com faca. “Com toda a educação, ela falou: ‘Senhora, posso sugerir? Nós enrolamos a massa no garfo’. São pequenas coisas que hoje as pessoas já não fazem mais”, relata.
Outra evolução não apenas no paladar, como na produção brasileira, segundo ela, é percebida em relação aos vinhos. Os clientes passaram a ter conhecimento maior sobre o tema, apreciar mais os rótulos, e os vinicultores locais têm se empenhado e investido até chegar a produtos notáveis. “Isso é uma grande satisfação”, celebra Erminia.