Bom Gourmet
Da Noruega ao Brasil, bacalhau percorre caminho de trabalho, sabor e tradição
Quase 12 mil quilômetros separam a cozinha da minha casa em Curitiba da cidade de Tromsø, que fica no Norte da Noruega, acima da linha do Círculo Polar Ártico. Daqui, enquanto dessalgo o bacalhau que comprei no Mercado Municipal, penso na chuva de sal que cai sobre o Gadus morhua fresco nas fábricas de beneficiamento de peixe norueguesas.
O sal que cai sobre o peixe de musculatura forte, pouca gordura e carne branca vem da Alemanha e da Tunísia. Quando cai sobre os peixes, ele lembra a neve que cobre as montanhas que rodeiam toda aquela região ártica. A paisagem deixa evidente o frio congelante que faz nas áreas externas dos barcos que navegam por alí e vão um tanto mais longe pelo Mar da Noruega e de Barents em busca do Gadus morhua.
O cobiçado pescado em sua forma mais selvagem só pode ser pego entre janeiro e abril no Atlântico Norte. Para preservar o peixe e ter alimento nutritivo o ano inteiro, os vikings adotaram o método de salga e secagem. Por séculos a receita se repete. Para cada quilo de pescado, um quilo de sal. Depois, o frio e o sol constantes - no verão, ele nunca se põe na região - davam conta do resto do processo de conservação.
A ilha de Rita
Era assim que faziam os vikings há quase 11 mil anos. Foi essa a receita que Hilbert Karlsen seguiu na fábrica de beneficiamento de pescado que fundou junto com o irmão em 1932 na pequena e gelada ilha de Husøy, em Senja.
É assim ainda hoje na Brødrene Karlsen SA, empresa agora comandada pela neta de Hilbert, Rita Karlsen. Na fábrica, são salgados cerca de 3 mil quilos de peixe de carne branca por ano - além do Gadus morhua, a empresa também trabalha com Saithe, Hadoque, Ling e Zarbo. O sal utilizado é uma mistura: parte marinho (da Tunísia) e a outra parte mineral (da Alemanha).
Na minha cozinha, sigo o ensinamento da minha mãe, que aprendeu com a mãe dela, que também aprendeu com sua mãe. Para cada quilo de bacalhau, dois litros de água. Sempre muito gelada.
São cinco trocas de água ao longo de dois dias até tirar o excesso de sal por completo. Vou fazer um Bacalhau à Vizcaína, ou apenas Bacalao, para os noruegueses. A receita é influência dos bascos que navegavam pelas águas frias do Atlântico Norte há séculos e por lá deixaram suas marcas.
Separo os ingredientes: tomate, alho, tomilho, azeitonas pretas, pimentões e batatas. Aviso a mim mesma: por favor, não erre! Afinal, tem o trabalho de muitas pessoas envolvido aqui para esse bacalhau chegar à minha cozinha.
Do Mar da Noruega até o seu prato
Tudo começa com os homens que se lançam ao mar todos os anos durante os meses mais gelados e por semanas ficam longe de casa, em busca dos peixes de carne branca. O Gadus morhua é o mais cobiçado. No Brasil, só ele pode ser chamado de bacalhau. Os demais - Saithe, Ling e Zarbo - são denominados de peixe salgado/seco ou tipo bacalhau.
Depois de retirados do mar, os pescados vão para as fábricas de beneficiamento que se espalham por parte da costa norueguesa. Nesses locais, eles são limpos, classificados por peso e tamanho e têm as partes separadas de acordo com o mercado.
Dele, tudo se aproveita. Inclusive a cabeça - que tem como destino países da África - e a língua, consumida na Noruega e em países ibéricos. O dorso do Gadus morhua espalmado é o favorito de Portugal e Brasil. Os dois países são os principais importadores de bacalhau salgado e seco da Noruega.
Limpo, o Gadus morhua vai para grandes caixas plásticas em camadas. Sal, peixe, sal, peixe, sal... até o topo. Dias depois, o sal puxou boa parte da água da carne - osmose, lembra? - e a salmoura que se forma é drenada. Aqui, duas possibilidades. Seguir para o congelamento e venda - nesse caso, ele é apenas salgado - ou passar para o próximo passo: a secagem.
No reino de Frozen, se seca o bacalhau
Na empresa de Rita, na ilha de Husøy, o bacalhau é apenas salgado. O processo de secagem se dá em Ålesund. É dessa cidade, que mais parece o reino de Arandelle do desenho Frozen, que sai cerca de 80% do Gadus morhua que chega ao Brasil a partir de empresas da Noruega.
Homens e mulheres de diversas nacionalidades passam o dia nas fábricas de beneficiamento de peixe branco. Sacodem o excesso de sal e arrumam em telas de cordas e madeira as camadas de peixe para secagem. É um processo semi-artesanal.
Depois, o antigo método viking é simulado em câmaras com temperatura e umidade controladas. Nelas, o peixe sofre os efeitos da combinação de sal, ar seco e temperatura constante. Passadas duas ou três semanas, estão prontos para serem embalados e seguirem viagem.
Tradição no sabor e na embalagem
O processo é o mesmo independentemente do tipo de peixe branco. Na embalagem, no entanto, algumas diferenças. O Gadus morhua que segue para o Brasil é embalado em caixas de madeira que carregam 50 kg de bacalhau. Os demais tipos de pescado salgado e seco vão em caixas de papelão em grupos de 25 kg.
Rune Fagerstad, o simpático gerente geral da Scanprod SA, em Ålesund, é quem explica. "Se mandamos o Morhua na caixa de papelão para o Brasil, o comprador não aceita, manda voltar". Eis uma mostra do poder da tradição quando se trata de bacalhau e Brasil.
Tradição essa que faz o país ser o segundo mercado de peixe salgado seco da Noruega. Em 2021, os brasileiros compraram 15,7 mil toneladas de peixe salgado e seco da Noruega. Neste ano, devemos chegar às 17 mil toneladas. Em 2019, no cenário pré-pandemia, foram 19 mil toneladas de bacalhau norueguês no Brasil.
O gosto do bacalhau fresco
De volta à minha cozinha em Curitiba. Estou na última água da dessalga. Enquanto inicio o corte dos demais ingredientes do prato, lembro do sabor do bacalhau fresco que provei em Ålesund.
A carne me lembrou a do congrio rosa. É branca, tenra e sai em lascas grandes no garfo. Nos pontos tostados, o sabor se aproxíma ao de preparos com o salgado e seco, mas não tem a mesma potência.
Provei o bacalhau fresco que eu mesma pesquei. Fisguei o peixe a bordo de um barco que saiu do canal de Brosudent, o qual corta o centro de Ålesund. A pesca do Gadus morhua é feita com vara de pescar - chamam de fisk.
Vão três iscas em pontos distintos da linha, que corre uns 20 metros dentro d’água. O pescador precisa fazer movimentos de sobe e desce com a linha para atrair o peixe. Tive sorte, pesquei o maior do nosso grupo. Foi o almoço no dia seguinte.
Mas, agora, é preciso tratar do jantar de hoje. Vamos ao fogão. Antes, aviso novamente a mim mesma: não estrague tudo. Afinal, depois de todo o processo de pesca e beneficamento, ainda foram necessários mais 30 dias de navio - do porto de Roterdã até Santos - para o bacalhau chegar ao Brasil. Honrar com um bom prato o trabalho das muitas mãos que tornaram possível esse bacalhau chegar até aqui é o mínimo a se fazer.
Aprenda a receita do bacalhau tradicional norueguês:
- 700g bacalhau em posta dessalgado (em média, o bacalhau ganha 30% de peso durante o processo de demolhe)
- 8 batatas cortadas em rodelas grandes
- 100ml de azeite de oliva
- 100ml de água
- Tomilho fresco
- 100g de extrato de tomate
- 1 lata de tomate pelado
- ½ pimentão vermelho
- ½ pimentão amarelo
- 4 dentes de alho bem picadinhos
- ½ pimenta piripiri bem picadinha (ou dedo de moça)
- 50g de azeitonas pretas
- 6 a 8 tomates frescos sem pele cortados a jardineira.
- Cerca de 100ml de água extra
- 4 colheres de sopa de salsa fresca finamente picada
- Comece pelo preparo do molho. Aqueça o azeite numa panela e refogue a cebola e o alho.
- Acrescente o pimentão em tiras, a pimenta e depois os tomates frescos.
- Deixe derreter e entre com o tomate pelado e o extrato de tomate.
- Acrescente a água e o tomilho.
- Adicione metade do bacalhau e as batatas. Deixe ferve em fogo brando de 20 a 30 minutos.
- Depois, inclua o bacalhau restante no molho e mantenha assim até o peixe e as batatas estarem totalmente cozido.
- Pode-se preparar este cozido com antecedência e esquentá-lo antes de servir. Conte cerca de 1 hora para o aquecimento em fogo brando ou no forno a 170°C.
A repórter viajou a convite do Conselho Norueguês da Pesca.