
Jussara Voss
Vosso Blog de Comida
Um evento criado para valorizar as Indicações Geográficas e fortalecer os laços entre a União Europeia e o Brasil e mais uma edição do Juro que danço

Escorreguei não numa toca, mas em um beco. Me vi na pele da Alice no País das Maravilhas. O meu tempo, como o dela, não obedecia ao relógio. Por isso, cheguei atrasada aos Sabores que Conectam - o evento criado para valorizar as Indicações Geográficas e fortalecer os laços entre a União Europeia e o Brasil.
Antes de entrar na jornada de sabores, conversei com gatos sorridentes, lebres apressadas, chapeleiros malucos, chefs incríveis e rainhas trabalhadoras (toda a equipe do projeto Juro que danço). Ao contrário da Alice na toca, não encontrei pessoas excêntricas, mas uma ideia excêntrica: organizar uma balada, em um dia da semana - desta vez será no Madá Pizza e Vinho (lá no fim do beco), na sexta-feira, 12 de setembro, ao meio-dia.
Quem sorriu para mim foi muita gente que ajuda o Juro que danço a tomar forma mais uma vez. Somos todos meio malucos. Loucos para que as pessoas tenham um momento de diversão, com boa comida, e ainda ajudem quem precisa: vamos trazer a Gastromotiva de volta para Curitiba.
Loucura bem-vinda. A ONG, que existe há 20 anos, começou oferecendo formação profissional em uma universidade para jovens em situação de vulnerabilidade. Hoje atua também no fortalecimento de comunidades, combate à fome e ao desperdício, entre outras frentes.
Produtos de origem
Logo eu daria outra escorregada e (como Alice) abriria várias portas - ainda um pouco secretas - que escancaro aqui. Conheci produtos incríveis que escondem histórias mais incríveis de produtores familiares.
Fui convidada não apenas para ouvir essas histórias, mas também ajudar a preparar dois pratos usando produtos de IG, com dois chefs famosos: Manu Buffara (Curitiba) e Bruno Stippe (São Paulo). Mais uma vez, ao contrário de Alice, não vi nada estranho.
Aprendi nesses anos de escrita sobre comida que o sabor de um prato depende, antes de tudo, da qualidade do produto. Se eu conhecer quem produziu, então, é como entrar no paraíso porque aí caminho pela história de uma família. Valorizar esse trabalho e consumir esses produtos passa a ser a obrigação de todos.
Indicações
Uma indicação geográfica (IG) designa produtos que têm uma origem geográfica específica e qualidades, reputação ou características atribuídas ao local - o que significa que a região se especializou e tem condições de produzir algo diferenciado.
As IG's são "ferramentas coletivas que valorizam produtos tradicionais associados a determinados territórios, fortalecendo a identidade local e promovendo seu reconhecimento no mercado”.
As classificações variam conforme a legislação de cada país. Na Europa: Denominação de Origem Protegida (DOP) e Indicação Geográfica Protegida (IGP). No Brasil: Denominação de Origem (DO) e Indicação de Procedência. Aqui, quem regulamenta as indicações é o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI).
Comunidade Europeia e Sebrae
“A ideia inicial do projeto Sabores que Conectam, da Comunidade Europeia - um bloco político e econômico do continente europeu formado por 27 países -, é realizar cinco eventos em cinco regiões diferentes, sempre com um chef brasileiro e outro europeu, para divulgar produtos de IGs europeias e brasileiras”.

O primeiro aconteceu no Rio de Janeiro. O último deverá acontecer em Brasília e, “quem sabe levando todos os chefs que participaram das edições”, conta Vicente Damian LLuna, da delegação europeia. Os produtos usados são definidos pelos chefs convidados.
A União Europeia possui mais de cinco mil Indicações Geográficas, das quais 358 estão previstas para reconhecimento automático pelo Acordo UE-Mercosul. Em contrapartida, 206 IGs sul-americanas serão reconhecidas no mercado europeu. No Brasil, o parceiro é o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), representado pela unidade do Paraná.
Mabel Guimarães, sediada em Curitiba, é responsável pela Gestão Estadual da Indicação Geográfica do Sebrae e destacou a diversidade dos IGs paranaenses. “É a maior do Brasil. No Paraná nós temos de tudo: produtos mais tradicionais, como cafés e queijos, mas também os mais diversos: vinho, melado e mel, bala de banana, frutos do mar, frutas, urucum, cachaça, carnes diversas e leite, por exemplo, até o mármore branco deve entrar em breve na lista. Mabel é uma incansável defensora dos nossos produtos. Não duvide se logo eles cruzarem o oceano e desembarcarem na Europa.
Benefícios
A lista de benefícios de um produto de origem é longa. Para o consumidor: confiança, autenticidade e qualidade. Para a comunidade local: renda, inclusão e preservação cultural. Para a região: desenvolvimento e reconhecimento internacional. Para o planeta: preservação da natureza e produção responsável. Para os chefs: ingredientes de origem e exclusividade. Para o mercado: maior valor agregado, novos negócios e turismo de experiência. Todos ganham.
Produtos
A recepção (que perdi) foi da melhor maneira: com cachaça e a nossa carne de onça. O prato de Curitiba é preparado com carne moída bovina fresca, cebola branca, cebolinha verde picada e temperos, servido com uma fatia da broa de centeio - IG de Curitiba.
A broa de centeio também apareceu em versão italiana: bruschetta com queijo Gouda Holland IGP, Urucum de Paranacity e Azeite de Trás-os-Montes DOP. Receitas que misturaram ingredientes do Brasil e da Itália, criando pratos que combinam duas culturas.
Aulas

A próxima etapa foi na cozinha. Nem deu tempo de respirar. De avental e touca, estava pronta para cozinhar, mas os homens na bancada foram mais rápidos. Entrei em cena apenas na hora de fazer o molho que Manu Buffara ensinaria.
Bruno Stippe
Com o chef Bruno Stippe aprendi a preparar o palline (“bolinhas” em italiano). A receita levava broa de centeio, embutido suíno Cracóvia de Prudentópolis, queijos Parmigiano Reggiano e Grana Padano, e melado de Capanema. O chef falou da sua trajetória e deu dicas preciosas, inclusive sobre harmonizar vinho e comida.
Manu Buffara
Segundo prato: Peixe, pirogue e ervilha, preparado com ingredientes do Brasil e da Itália, mostrou como unir culturas. Prosciutto di Parma DOP, Queijos Witmarsum, Mel das abelhas nativas do Oeste do Paraná, Azeite Val di Mazara DOP.
Manu Buffara trouxe a proposta de dividir histórias. Ensinou a fazer um prato típico polonês, o pierogi, e como fermentar. O prato - tema da aula - está no novo menu do Manu Restaurante inspirado nos imigrantes que formaram o Paraná. Invejei a Iza, que ajudava a chef, considero um prêmio estar ao lado dela para aprender.
Manu reforçou a importância de divulgar os produtos de origem. “É uma oportunidade de valorizar as famílias de produtores, para que continuem produzindo e passando para outras gerações a cultura que aprenderam”.
Panna cotta do Sul
A típica sobremesa italiana - panna cotta - ganhou mel do Planalto Sul Brasileiro, chocolate de Gramado e morango do Norte Pioneiro flambado com a cachaça de Luiz Alves. Infelizmente, fiquei sem provar os doces finos de Pelotas e sem os quadradinhos de Turrón de Alicante IGP.

Alice trocaria o chá por vinho se ouvisse as explicações do enólogo Alcioni Dümes, que falou sobre as bebidas que iriam acompanhar os pratos. “O momento de saber se os sabores do prato e do vinho se conectam, se existe sinergia e equilíbrio entre acidez, mineralidade e intensidade”.
Curiosidades
Rui Morschel apresentou algumas histórias por trás dos produtos. Explicou que o mel do Oeste é produzido em uma região de preservação às margens do Lago de Itaipu, onde tem muita abelha. É uma das 21 IGs do Paraná, Estado líder ao lado de Minas Gerais. Hoje temos 129 IGs brasileiras e, somadas às europeias registradas no Brasil, são 141.
Manu utilizou o mel da abelha Jataí, sem ferrão, uma das mais de 300 espécies existentes no país. No mundo, cerca de 400 espécies já foram registradas - e mais de 300 estão aqui. O Brasil é referência mundial.
Sobre o embutido suíno, produzido há mais de 40 anos, a Cracóvia de Prudentópolis (a cidade mais ucraniana do Brasil), Morschel revelou a origem do nome: o melhor amigo do empreendedor que o criou era um polonês de Cracóvia, e assim o produto foi batizado.
A Broa de centeio chegou com a imigração alemã e polonesa. O grão se adaptou bem ao frio da região e a tradição se mantém viva por décadas.
Para o chef, “a indicação geográfica é um pedaço de ouro que as pessoas não sabem que é ouro. Nossa missão é dizer o que é e o que vale. Isso é cultura, história, economia, identidade e agricultura familiar”.
Epílogo
O que será que Alice faria com tantas novidades? Perdoem as analogias, mas não sei porquê a personagem de Charles Lutwidge Dodgson, conhecido como Lewis Carroll - veio parar aqui. Deve ter sido alguma magia daquele beco.
O que é verdade é que fui brindada com um presente em plena sexta-feira à noite. A minha “extraordinária aventura”, não foi um sonho. Agradeço por conhecer de perto a iniciativa da União Europeia e do Sebrae para divulgar produtos especiais.
Quando escutamos o barulho da chuva batendo na janela, chegou à mesa a panna cotta: um creme banhado na cachaça Luiz Alves, com calda de morangos do Norte Pioneiro, mel do Planalto Sul Brasileiro e uma nuvem de chocolate Gramado; deu a certeza para quem estava presente de que recebemos uma missão. Eu aceitei.