A Xepa, com André Bezerra e convidados
Vozes
Um boteco para chamar de meu; algumas reflexões sobre o meu tipo de botequim
Quem não irrompeu, pela primeira vez, num botequim e caminhou entre os habitués até aquela trincheira que é o balcão, nunca sentiu uma das maiores adrenalinas da vida. Divulgação
André Bezerra
Todo boteco, para ter mais chance de se tornar um clássico, precisa ter um pouco de pragmatismo. Certas coisas não deveriam faltar, “Conta ponto”. Pergunte para o sujeito que visita botecos raiz e registra tudo - no perfil dele - numa rede social. E eu digo que, além do nome do dono na placa, deveria ter o dono atrás do balcão. Como garimpeiro de botecos, meço cada aspecto desde o momento quando entro. Mas não me iludo. Sei que, antes de esquadrinhar o ambiente, sou medido pelo dono do estabelecimento, dos pés à cabeça.
Doutorandos pela escola que é o lado de lá de um balcão, eles me desvendam em frações de segundos. Por isso, é bom que saibam que os estou medindo igualmente. Quem não irrompeu, pela primeira vez, num botequim e caminhou entre os habitués até aquela trincheira que é o balcão, nunca sentiu uma das maiores adrenalinas da vida. Lembro-me muito bem de quando adentrei este boteco no coração do Batel. Marchei até o front e parei diante do senhor que comandava o lugar. Eu sabia o nome dele, estava escrito na placa diante do bar. Eis mais uma coisa bacana sobre um boteco de respeito: ele leva o nome do dono. Pode ser um apelido, um nome do meio, sobrenome. O importante é que identifique aquela figura lendária que nos atende e nos aguenta nos nossos melhores e piores dias.
Cumprimentei com uma saudação e ele balançou a cabeça, sem dizer palavra. Tem uma cerveja? Ele simplesmente mirou o olhar para a geladeira que estava no pequeno salão, ao alcance de todos. Entendi a mensagem, abri a porta, apanhei a minha garrafa e coloquei diante dele. Os dois ou três clientes que estavam ali também me observaram. Havia um silêncio sacro que foi quebrado pelo estampido da tampinha se soltando da garrafa. Acho que ela ainda dava piruetas no ar quando o Toninho me alcançou um copo. Fique à vontade - disse-me ele - é só apanhar a sua cerveja e colocar aqui. E apontou o local com o abridor numa mão. Com a outra, anotou o meu nome num caderninho de espiral. Depois, rabiscou um pauzinho na vertical. Era a minha cerveja e, a partir daquele dia, perdi a conta de quantos pauzinhos o Toninho rabiscou na frente do meu nome. Passei a frequentar o bar dele semana sim, outra também.
Mais uma coisa que gosto muito de encontrar no boteco são as mesas dos velhos. Eles conhecem a cultura do boteco como ninguém. Além de beber com classe, sabem apreciar uma boa cozinha, contam as melhores histórias e, principalmente, são cheios de manias. Eis o aspecto que desafia os verdadeiros donos de boteco. Eles precisam lidar com as manias de seus velhos clientes. Tem os que gostam de beber no copo alto e os que preferem o copo baixo. Aqueles que gostam de se sentarem perto da parede e os que precisam ficar olhando a rua. O educado, o impaciente, o desbocado que fala alto e o que entra mudo e sai calado. O urgente é o que chega, senta-se com os amigos, toma uma, se despede e vai embora. E tem o meu favorito, que é o solitário. O sujeito que vai sozinho ao boteco tem o meu respeito e admiração. Aquele que se coloca na ponta do balcão, pede uma cerveja no copo americano, um maracujazinho com uma pedra de gelo no copo de conhaque e fica observando em volta. Ou fica contrariado quando chega e já ocuparam o lugar dele. Deixa de mania, criatura adorável.
Tem um boteco em Curitiba que o dono, aquele gênio, personalizou os copos. Estão todos lá, como se fossem troféus: o copo com o nome do Nelson gravado, o do Hélio, do Clóvis e do Ozeias. Cada vez tem mais mulheres frequentando, então tem o copo da Cleide, o da Laura e o da Rose. Um dia desses, entrei lá e comemorei diante da minha visão: André! Estiquei o braço e fui rapidamente repreendido. Era o copo do proprietário do estabelecimento, meu xará. Ainda não tenho milhagem para receber tamanha honraria. Tampouco idade. Do alto dos meus quarenta, sou praticamente um adolescente nos botecos mais clássicos. Os donos me recebem como se eu fosse um velho, mas até hoje nunca fui tocado embora, ainda espero o dia quando serei convidado a me retirar do boteco. Eis o Olimpo da maturidade no bar, ser constantemente expulso pelo dono. Só alguém com muita milhagem consegue isso.
Tampouco tenho conta em lugar nenhum e isso é um pouco frustrante. Pegar fiado no bar, só quem é Ph.D. na botecagem. Pendurar uma conta, ou várias, te coloca em outro patamar. Você lê o nome do camarada sobre a página dos devedores no caderninho e logo pensa, “este tem as bases.” Ele é o mais xingado pelo dono. “Não aguento mais aquele lazarento enchendo o meu saco aqui dentro.” Ou, então, “cadê aquele desgraçado que ainda não apareceu hoje?” Meu sonho é ser xingado pelos donos dos bares que costumo ir. E pelas costas. É a prova cabal de que eles lembram de mim, sentem a minha falta como eu sinto a deles. Mandar pendurar, ficar devendo, sair de fininho sem pagar, ouvir o dono gritando da porta quando eu já estiver na esquina, “volte aqui seu sem-vergonha”, ou “não me apareça nunca mais.”
Outro dia me saíram com esta: disseram que todo dono de boteco sabe que o devedor bom é aquele que tem conta pendurada em vários botecos, que a fama dele o precede. Este pode até demorar, mas paga. É por isso que segue bebendo e comendo fiado nos lugares. O sujeito que não tem dívida em nenhum boteco não dá garantia nenhuma de que vai pagar, pode ser simplesmente um malandro. Estávamos num botequim que costumam chamar de semiaberto porque, dizem, vai gente de tornozeleira eletrônica. Tem ovo colorido em cima do balcão, vina com molho dentro da estufa e vários tipos de rollmóps. O mais jovem na mesa - depois de mim - já dobrou a curva dos setenta. O sujeito que contou a história, fiquei sabendo, deve em pelo menos quinze botecos diferentes.