A Xepa, com André Bezerra e convidados
Vozes
O bife que deu conta da crise que o Apraz não resolveu
Desde minha avó, nos anos 1940, 1950, minha mãe nos anos 1970, 1980, até nós, as multitarefas do século 21, somos iguaizinhas. Quanto mais complicado, melhor. Bigstock
Por Isabela França*
Minha terapia tem cheiro de cebola derretendo na frigideira. Se a questão que me aflige tiver origem amorosa, melhor fritar na manteiga. Dissolvo meus dramas num caldo bem feito, com carne e osso. Cozinho, depuro, coo e volto pra panela. Até reduzir.
Há algum tempo descobri que faço assim, porque foi assim que aprendi. Venho de uma casa onde as mulheres cozinham. Cozinham pra encher a barriga dos seus, mas principalmente, cozinham para alimentar a alma. Até transbordar, derramar e saciar todo mundo que está na mesa. Se faz frio é sopa, barreado, macarrão caseiro com posta. Se faz calor é salada de tomate com molho de hortelã, quibe cru, tabule babaganoush.
Nada simples daquilo que tira da geladeira e põe no microondas. Quanto mais complicação, melhor. Nada de bife limpo e porcionado. O negócio delas é ir no frigorífico e escolher um quarto do boi, levar pra casa, cortar, limpar, separar sebo, nervos, gordura, ossos, carne de primeira, segunda e o resto. Dar destino e gosto a cada pedaço.
Eu só me dei conta dessa herança - que pra mim veio da minha avó, mas deve ser bem anterior a ela - no dia em que constatei que um mignon alto, tirado com faca bem afiada de uma peça escolhida no açougue, grelhado com duas boas colheradas de manteiga, três tomates e três cebolas partidos em quatro tinha controlado uma crise de ansiedade que o Apraz não deu conta.
Observei aqueles dois medalhões no fogão ganhando casca, senti aroma do sumo da carne se misturar à manteiga derretida, os tomates se dissolverem e aumentarem o caldo enquanto a cebola murchava. Esses cinco ou seis minutos trouxeram uma leveza instantânea. As lágrimas que escorriam no meu rosto foram cessando e quando sentei em frente ao prato prestes a dar a primeira garfada entendi para onde aquele ritual tinha me levado.
Tinha vivenciado uma meditação guiada. Guiada por minha avó, que fazia esse bife com arroz branco soltinho e nos esbaldávamos de comer até lamber os beiços. Na mesa dela podiam sentar quatro ou vinte pessoas. Sempre tinha comida para todos.
O prato pronto era apenas a ponta deste processo. Antes de estar pronto, tudo aquilo que estava servido tinha cumprido um longo itinerário. Não existia o Rappi, pra onde eu apelo na correria do dia-a-dia. Os frigoríficos da Região Metropolitana, as colonas de Santa Felicidade e da Barreirinha, o Mercado Municipal, o bicho-de-goiaba da Riograndense, os pescadores de Barra Velha e outra infinidade de gente, até na Argentina e no Uruguai, faziam parte da sua lista de fornecedores recorrentes.
A cozinha da minha avó ultrapassava os limites do cômodo que comumente denominamos assim. A cozinha era composta de um porão, cujo acesso se dava por uma porta embaixo da escada de serviço nos fundos da casa. Lá ficava o estoque infinito de latas de azeite de oliva extra virgem vindas da Argentina, assim como os queijos, ao lado de outras latas de pêssego e vidros de conservas, potes enormes de farinha, grãos e outros insumos. Subindo esta escada que levava para a cozinha, havia uma área de serviço com janelões de vidro martelado e nos beirais repousavam réstias de cebolas, tranças imensas de alho e ramos de ervas secas amarradas por barbantes. As ervas, além de temperar a comida, também serviam para defumar a casa e benzer as crianças quando alguém estava ruim da barriga ou não dormia direito.
Aliás, no quesito benzimento e negociação com o sobrenatural, ela também era boa. Ninguém precisava nem dizer qual era o problema e ela já tinha duas ou três indiretas bem diretas, que vinham acompanhadas de um olhar de soslaio só dela, mostrando o que precisava ser feito.
Já minha mãe fez parte daquela geração de curitibanas que frequentou o famoso ‘Caça-Marido’, escola de ensino médio do tempo delas em que as disciplinas ensinadas às moças eram Puericultura, Culinária, Corte e Costura, Bordado, entre outras tidas como essenciais para assegurar um bom casamento. Deste modo, minha infância, nos anos 1970, foi em meio a cadernos de receitas nos quais aprendi a preparar e decorar uma maionese de batata, modelada no formato de uma linda cesta decorada com rosas feitas de casca de tomate. Os mesmos cadernos ensinavam coquetel de camarão com molho golf (eu achava o máximo colocar uma dose de cognac!) e falso patê de camarão. Tudo exigia muito tempo entre a logística dos ingredientes e do preparo, é claro.
Desde minha avó, nos anos 1940, 1950, minha mãe nos anos 1970, 1980, até as enlouquecidas multitarefas do século 21, somos iguaizinhas. Quando nos reunimos em datas festivas com minhas tias e primas seguimos todas nos vangloriando de nossas receitas e contando umas às outras de onde veio cada ingrediente e a ‘trabalheira’ que deu preparar aquilo tudo e ainda arrumar a casa, a mesa para estarmos ali lindas, penteadas, maquiadas e de unhas feitas.
Mas cada vez mais me dou conta que fazemos desse jeito porque foi a maneira que encontramos para exorcizar nossos bichos e não matarmos (nem de fome, nem de veneno ou num surto) a nossa descendência.
E daí quando a barra pesa do lado de cá, eu dou um jeito de descer a Serra do Mar, colocar o barco na baía de Guaratuba e ir ali até a casa do pescador para comprar uns camarões, uns mariscos e um peixe, e preparar um jantarzinho numa terça qualquer.
*Isabela França é jornalista e editora