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Guilherme Rodrigues

Notas Báquicas

Drible os (poucos) azares de garrafas

21/10/2022 15:43
Numa degustação de grandes vinhos da Ilha da Madeira, uma das estrelas era um Blandy’s Verdelho solera, safra por volta de 1875. Havia uma grande expectativa. Quando olhei para o copo, que miséria ! Estava todo turvo e opaco. Foi um balde d’água fria, parecia estragado. Cheirei, mas o nariz, embora mudo, não era de vinho passado. Na boca, sabores também mudos, mas não de vinho arruinado.
Tinha umas garrafas desse vinho. Examinei contra a luz e constatei que a cor era sadia, limpa, transparente e brilhante, com uma leve borra ao fundo. Na primeira chance abri uma delas, decantei cuidadosamente, e o vinho estava resplandecente: na visão, nos aromas e sabores. Testei então o vinho turvo, que ficara no fundo da garrafa ao fim da decantação. Eureka! Sujo, era como na degustação que comentei; limpo, uma beleza. Levaram a garrafa diretamente para a prova, sacudiu no caminho, turvou e apagou o vinho. Aprendi que quando se agita a garrafa e o depósito emulsiona com o vinho, além de tornar a aparência má, abafa e apaga sensivelmente os aromas e sabores da bebida. A seguir, algumas situações patológicas e como lidar com elas.

Garrafas com depósito

Em geral, acontece em vinhos mais velhos, mas a decantação prévia resolve. Se for levar para partilhar com amigos, decante previamente o vinho em casa. Limpe a garrafa com água mineral, escorra bem, retorne o vinho limpo para a garrafa, feche-a e aí sim transporte-se ao destino. Se o vinho for muito velho ou frágil, a solução é mandar a garrafa com antecedência de uma semana pelo menos ao destino, deixando-a então em pé para fazer o serviço na hora.

Garrafas fraudadas

No caso das fraudes, muitas vezes o líquido sequer é desagradável. Bem conhecidos os casos das fraudes multimilionárias de rótulos icônicos. Lotes de garrafas veneráveis, mas fake, tinham amostras servidas em recepções exclusivas, com participação de notórios degustadores e críticos internacionais, que cravavam nota 100, entre suspiros de êxtase e louvor às verdadeiras fraudes ... Sinal de que pelo menos o gosto era bom, os falsários de milionários caprichavam. Aí não tem jeito, vai beber o que não comprou e nem perceberá. Ou a fraude foi grosseira e o gosto será muito destoante ou ruim mesmo.

Garrafas bouchonée

No caso do bouchonée, o gosto “à rolha”, desagradável, lembrando mofo e papelão molhado, não tem solução. É causado pelo TCA (Triclorioniasol), derivado de um fungo que ataca a cortiça, contaminando a bebida. Sabe-se hoje derivado de impurezas, ainda que microscópicas. Só piora depois de aberto o vinho. Se acontecer num restaurante, a casa tem obrigação de repor a garrafa. Se o vinho era teu, perdido foi. De todo modo, os cuidados especiais que passaram a ser tomados no processo da fabricação das melhores rolhas de cortiça, a partir dos anos 2000, praticamente eliminaram esse risco.

Garrafas mal armazenadas

Por fim, se o vinho arruinou-se dentro da garrafa por mau armazenamento – a situação mais comum dessas patologias -, aí não tem jeito. Por isso, todo cuidado com a origem deve ser tomado quando se compra vinho, especialmente de mais idade. Com muito tempo circulando no mercado, a chance da garrafa ter passado um período, ainda que curto, exposto a más condições e prejudicado a bebida é grande.