Guilherme Rodrigues
Notas Báquicas
Drible os (poucos) azares de garrafas
Numa degustação de grandes vinhos da Ilha da Madeira, uma das estrelas era um Blandy’s Verdelho solera, safra por volta de 1875. Havia uma grande expectativa. Quando olhei para o copo, que miséria ! Estava todo turvo e opaco. Foi um balde d’água fria, parecia estragado. Cheirei, mas o nariz, embora mudo, não era de vinho passado. Na boca, sabores também mudos, mas não de vinho arruinado.
Tinha umas garrafas desse vinho. Examinei contra a luz e constatei que a cor era sadia, limpa, transparente e brilhante, com uma leve borra ao fundo. Na primeira chance abri uma delas, decantei cuidadosamente, e o vinho estava resplandecente: na visão, nos aromas e sabores. Testei então o vinho turvo, que ficara no fundo da garrafa ao fim da decantação. Eureka! Sujo, era como na degustação que comentei; limpo, uma beleza. Levaram a garrafa diretamente para a prova, sacudiu no caminho, turvou e apagou o vinho. Aprendi que quando se agita a garrafa e o depósito emulsiona com o vinho, além de tornar a aparência má, abafa e apaga sensivelmente os aromas e sabores da bebida. A seguir, algumas situações patológicas e como lidar com elas.
Garrafas com depósito
Em geral, acontece em vinhos mais velhos, mas a decantação prévia resolve. Se for levar para partilhar com amigos, decante previamente o vinho em casa. Limpe a garrafa com água mineral, escorra bem, retorne o vinho limpo para a garrafa, feche-a e aí sim transporte-se ao destino. Se o vinho for muito velho ou frágil, a solução é mandar a garrafa com antecedência de uma semana pelo menos ao destino, deixando-a então em pé para fazer o serviço na hora.
Garrafas fraudadas
No caso das fraudes, muitas vezes o líquido sequer é desagradável. Bem conhecidos os casos das fraudes multimilionárias de rótulos icônicos. Lotes de garrafas veneráveis, mas fake, tinham amostras servidas em recepções exclusivas, com participação de notórios degustadores e críticos internacionais, que cravavam nota 100, entre suspiros de êxtase e louvor às verdadeiras fraudes ... Sinal de que pelo menos o gosto era bom, os falsários de milionários caprichavam. Aí não tem jeito, vai beber o que não comprou e nem perceberá. Ou a fraude foi grosseira e o gosto será muito destoante ou ruim mesmo.
Garrafas bouchonée
No caso do bouchonée, o gosto “à rolha”, desagradável, lembrando mofo e papelão molhado, não tem solução. É causado pelo TCA (Triclorioniasol), derivado de um fungo que ataca a cortiça, contaminando a bebida. Sabe-se hoje derivado de impurezas, ainda que microscópicas. Só piora depois de aberto o vinho. Se acontecer num restaurante, a casa tem obrigação de repor a garrafa. Se o vinho era teu, perdido foi. De todo modo, os cuidados especiais que passaram a ser tomados no processo da fabricação das melhores rolhas de cortiça, a partir dos anos 2000, praticamente eliminaram esse risco.
Garrafas mal armazenadas
Por fim, se o vinho arruinou-se dentro da garrafa por mau armazenamento – a situação mais comum dessas patologias -, aí não tem jeito. Por isso, todo cuidado com a origem deve ser tomado quando se compra vinho, especialmente de mais idade. Com muito tempo circulando no mercado, a chance da garrafa ter passado um período, ainda que curto, exposto a más condições e prejudicado a bebida é grande.