A Xepa, com André Bezerra e convidados
Vozes
Mesa de refeição
Casa de nordestino é sinônimo de mesa farta. E assim eram todas as mesas de refeição das minhas férias. Bigstock
Ana Holanda*
Minhas férias sempre tiveram a brisa do mar. Sou uma paulistana nascida e criada em São Paulo, mas filha de uma pernambucana com um alagoano. Passei boa parte das férias de verão da infância com a família de mamãe, em Recife. Era um tempo muito bom, em que tudo era novidade para aquela menina criada dentro de um apartamento. Nessas semanas, eu ficava na casa da minha avó ou na de tia Lybia, irmã de mamãe. A casa de minha avó Esther tinha quintal grande com tudo que era tipo de árvore. Pé de caju, coqueiro, mangueira, pitangueira. Foi ela quem me ensinou a colher as pitangas mais doces: “pegue as mais vermelhas”. Hoje, quando encontro um pé desses, não tenho tempo de colhe-las para fazer suco. Devoro tudo ali mesmo, embaixo da árvore.
Casa de nordestino é sinônimo de mesa farta. E assim eram todas as mesas de refeição das minhas férias. Nas minhas lembranças residem a carne de charque, a de sol com manteiga de garrafa, o feijão verde, o doce de caju em compota, o queijo de manteiga, o de coalho, o escondidinho, a galinha a cabidela, o suco de cajá, o sorvete de mangaba – acho que esqueci muita coisa porque minha lista de preferências é imensa. O melhor momento era quando todos nós – tios, primos – sentávamos em torno da mesa oval da casa de titia. “Me passa o queijo”. “Coloca um pouco de charque pra mim”. Tenho uma foto, que guardo com carinho, em que estamos todos nesta mesa farta. Era só um lanche de final de dia, mas quase não havia espaço para os pratos. Estávamos todos sorrindo. Risadas sinceras de quem não tinha a obrigação de demonstrar felicidade nas redes sociais. Era tudo genuíno ou era o que era. A mesa fazendo nos caber a todos. 12, 14 pessoas. Todas ali, sendo elas mesmas.
Refeições à mesa tem essa característica bonita de acolher tudo. Há dias de risadas e de conversa fácil e há aqueles em que preferimos o silêncio, recolhidos nos próprios problemas. Quando meus filhos entraram na adolescência, uma linha imaginária os atravessou e separou. As brincadeiras de criança deram lugar as palavras duras e as críticas e provocações entre eles. Passei um bom tempo suportando, dia após dia, as discussões no horário do almoço, única refeição que fazemos juntos. Bastava se sentarem que qualquer palavra se transformava em estopim. E a discussão começava. Os almoços passaram a ser um momento tenso, para mim. Em alguns dias, tinha vontade de chorar. Lembrava das risadas ao redor da mesa da casa de Recife e me perguntava onde havia me perdido? Quando permiti que isso acontecesse bem debaixo do meu queixo? Fases.
Aos poucos e com os hormônios se amansando, eles têm conversado mais do que brigado. E já posso respirar, mais ou menos, aliviada. Apesar desses momentos difíceis, gosto deste ambiente que criei, em que cada um pode ter a liberdade de ser quem se é. De dizer aquilo que aquece e também machuca. Isso me faz lembrar uma mesa que tivemos na casa dos meus pais. De madeira, redonda. Acomodava bem a família de cinco pessoas, mas se recebíamos visita para a refeição, ela se agigantava. Para isso, era preciso apenas puxar um dos lados e a mesa se abria ao meio mostrando uma placa de madeira, que se encaixava perfeitamente no meio e alargava o móvel em relação ao tamanho original.
Já houve dias em que chorei na mesa da minha atual casa. Papai está com 88 anos, mamãe com 83. Conviver próxima a eles transforma meu mundo interno em um mar que nunca sei se haverá apenas marolas ou ondas grandes. E em um dia de ondas grandes, dessas que nos levam e afogam, transbordei na mesa de refeições com meus filhos. Falei sobre a importância de haver espaço entre nós em que tudo deveria ser dito: as notícias tristes e as alegres, as frustrações, os medos, as angústias também. Não quero chegar ao final de minha vida em uma mesa de refeições silenciosa, pela ausência das pessoas ou do espaço de escuta. Amor.
Venho de uma família em que as memórias vão sendo apagadas com o passar dos anos. Vovó teve Alzheimer, titia também. Com ambas, a mesma história: ninguém sabia o que fazer. Titia chegou nos últimos estágios da doença. Em que não se tem mais qualquer atividade com independência, mesmo aquelas que nos parece tão automáticas, como mastigar, ir ao banheiro sozinha, caminhar. Nada. A mente apaga também a memória do corpo até nos transformar em uma folha em branco. Titia, assim como vovó, nunca deixou instruções do que gostaria ou não que fosse feito. O que desejava para si quando perdessem totalmente o controle.
Penso que a mesa onde havia tanta alegria, o tempo todo, talvez não tenha aberto espaço, para elas, para as conversas difíceis. Na última vez que visitei titia, antes dela partir, há quase cinco anos, ela era um corpo sobre uma cama hospitalar. Não falava, não esboçava qualquer reação. A sua comida tão bem temperada agora dera lugar a frascos de pós nutricionais que eram misturados com água e injetados nela por uma sonda. Caminhando pela casa, fiquei um bom tempo fitando a mesa onde tudo acontecia. Ela ainda estava lá, mas não haviam mais as pessoas, a comida, a alegria do encontro. Estava tudo vazio, com a luz apagada, assim como a vida de titia.
Hoje, eu e minha irmã fazemos questão de, todo domingo, almoçarmos com mamãe e papai, no apartamento em que crescemos, na mesma mesa em que sentamos centenas de vezes. Nela, há meu nome gravado no tampo: Ana, escrito em letra de forma. Estripulia do irmão caçula que queria fazer com que mamãe brigasse comigo. Naquela mesa de refeições existe a nossa história e nós tentamos, ao máximo, mantê-la em nós. Dias desses, para acompanhar a massa que mamãe havia feito, levei uma carne de panela. Na primeira garfada, minha irmã disse: “parece a tia Lybia”. Percebi que se emocionou e, enquanto comia, ainda repetia a mesma frase. Sentimos saudades de titia. Muita. Ela sempre foi uma mulher especial para nós. Doce, gentil e cozinheira de mão cheia. A comida tem essa capacidade encantadora de nos manter próximos de quem amamos, mesmo quando essas pessoas não estão mais aqui. Naquele domingo, a carne de panela teve sabor de saudade. Levou minha irmã para a mesa de refeições da casa de titia, em Recife. Aqueceu. Alimentou as boas recordações de um tempo em que as nossas vidas se resumiam aos sonhos. Naquele domingo, fomos mais felizes. Todos nós, ao redor da mesa de refeições.
*Ana Holanda é jornalista, escritora e professora. Autora dos livros Minha Mãe Fazia, sobre comida e memórias afetivas; Como se encontrar na escrita; e Amar é ridículo. Trabalha há três décadas com textos, já passou por diversas publicações, de jornais a revistas (editora Globo e Abril) e foi por dez anos editora-chefe da revista Vida Simples. Hoje, se dedica a ensinar pessoas e orientar empresas como ter uma comunicação mais próxima e humana, por algo que chamou de escrita afetuosa. É mãe de um casal de gêmeos, Clara e Lucas.