A Xepa, com André Bezerra e convidados

A Xepa, com André Bezerra e convidados

A Xepa

O jardim, a salada e o capim

09/09/2025 19:58
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Experiências gastronômicas vão além do prato. Elas trazem encontros, identidade, memórias e narrativas cheias de sabor. Crédito: Guto Souza.

Por André Bezerra*
Ele escreve sobre gastronomia para um jornal importante e os seus textos circulam pelas redes sociais. Por isso, recebe convites para ir aos restaurantes, ao encontro de produtores no campo, a eventos gastronômicos dentro e fora da cidade. Quando entra nas cozinhas, conversa com o chef, com os cozinheiros e esses diálogos são transportados para as histórias que costuma escrever.
Nos salões dos estabelecimentos, dos mais simples aos mais elegantes, bate longos papos com garçons, maîtres, gerentes, sommeliers e comensais. Conhece empreendedores e donos de estabelecimentos de gastronomia pelos quatro cantos da capital onde costuma circular. Viaja em busca de conhecer outros sabores com outros sotaques, advindos de produtos e modos de fazer que não são familiares.
Nunca acreditou que a culinária se resume ao prato. Uma experiência gastronômica, para ele, tem que vir enredada numa trama muito maior. Se a inspiração para uma receita remonta a gerações, cada etapa precisa ser descortinada, é um trabalho de investigação. Para ele, os detalhes de uma boa história são como os ingredientes para um prato extraordinário.
Numa dessas excursões a trabalho, foi conhecer um evento que reunia uma dúzia de chefs nessa cidadezinha histórica. Com tradição culinária, o vilarejo fica entre as montanhas, bem perto do mar. O clima ali é quente, as ruas são de pedra e há um rio que atravessa o pequeno município. O casario colonial e as ruas de pedra remontam ao Brasil “colônia”. De fato, as construções também remetem ao mesmo período e muitos restaurantes estão dentro destes imóveis tão antigos quanto imponentes. Não é o caso daquele restaurante aonde ele resolveu ir almoçar.
Dentre a dúzia de chefs celebrados - todos presentes na cidadezinha naquele final de semana - foi justamente ao encontro de uma cozinheira menos conhecida que ele decidiu rumar. Estava muito curioso pra ter o primeiro contato com a culinária dela e o restaurante que a recebeu ficava numa casa térrea, cercada de jardins. Ele cruzou o portão baixo e seguiu pelo caminho, entre o colorido das flores e o verde das plantas. Havia raízes e pedras que pareciam ter descido das montanhas em volta. Havia aroma de ervas na atmosfera. Havia um alarido de mata e dava para escutar o barulho do rio correndo.
As janelas da casa eram grandes e estavam todas abertas para o jardim. O clima era dominical, festivo e ele sentia o tempo escorrer desacelerado. Ao fundo, uma espécie de gazebo, um terraço aberto para o regato que corria cintilante pelos raios de sol. As mesas eram grandes e ele achou que as pessoas ao redor delas eram bonitas, elegantes. As mulheres usavam vestidos floridos, alguns homens usavam chapéu.
Diante de uma das mesas, reconheceu a cozinheira. Embora nunca tivessem se visto antes, ambos se reconheceram. Apresentaram-se e ele perguntou sobre o prato que ela criara para o evento. Era uma salada “thai”. Ela pediu para alguém trazer e sugeriu que escolhesse um assento, mas ele estava bem. Devem ter conversado um pouco sobre o trabalho dela, provavelmente falaram sobre o evento e sobre as paisagens deslumbrantes em volta deles. Ninguém ouviu ou registrou o teor da conversa e ele não se lembraria do assunto precisamente. Lembra que a dona da casa veio cumprimentá-lo e falou algo sobre macaquinhos pelas copas das árvores. Lembra da moita verdejante ao lado deles, um pé de capim limão.
Quando alguém trouxe a bandeja com o prato - na verdade era uma cumbuca funda - a própria cozinheira o apanhou e apresentou. Havia camarões, laranja, melado, banana-da-terra - que abundava a região - e este molho que ele não se esqueceria. Dava pra ver lascas de uma pimenta bem vermelha, algumas folhas de coentro, especiarias, gergelim. O sabor alçou o paladar do cronista de gastronomia de um extremo a outro, da picância da pimenta ao dulçor do melado. Percebeu as notas das ervas frescas, um pouco de cítrico contrapor o salgado marinho do camarão. Sorveu o molho como se sorvesse aquele dia inteiro, um momento a ser recordado por uma vida. Fez questão de comer em pé e achou que era a decisão mais certa para aquele ato.
Olhou para a cozinheira e concluiu que ela o desvendava, que sabia que a criação dela o colocava numa espécie de suspensão, num redemoinho que era surpreendente para ele. Chegou a pensar se havia algo de maquiavélico naquela clarividência e resolveu tergiversar. Proferiu qualquer bobagem e decidiu enfrentá-la, cumbuca e colher ainda em punho. Revelou que apreciava chás, que reconhecia um sabor familiar em meio àquela ecatombe intrigante. Ela se virou e colheu uma folha longa da touceira ao lado deles, amassou entre os dedos e entregou para ele cheirar. Era o capim limão que ela tinha colhido daquele mesmo arbusto e adicionado ao prato.
*André Bezerra é cronista de gastronomia, assina a coluna A Xepa - para o Bom Gourmet - e o @andrebezerraoficial