

A Xepa, com André Bezerra e convidados
A Xepa
Nem todas as nonnas italianas são cozinheiras de mão cheia

Crédito: AleksandarNakic.
Por Andrea Torrente*
Enquanto minha avó materna era a regra, a avó paterna era a exceção.
Sempre me pergunto se os restaurantes que servem “comida de vó” usariam esse lema caso tivessem conhecido minha vó paterna. Falecida por causa da Covid-19, a nonna Francesca - que todo mundo chamava de Franca - era um amor de pessoa.
Doce e afável, sempre fazia questão de dar uma gorjeta aos netos, se interessava sobre o andamento dos estudos e nunca faltava com carinho. Só tinha um defeito: era tudo, menos que uma cozinheira de mão cheia.
Na cozinha, virava-se, claro, mas difícil afirmar que sua comida fosse memorável. Enquanto escrevo esse texto, percebo que na verdade era inesquecível sim, pois, após décadas, ainda lembro dela. Só que não no bom sentido.
Quando nos convidava para almoçar aos domingos, eu e minha mãe torcíamos o nariz. Meu pai não dizia nada porque estava acostumado. Nonna Franca tinha o hábito de preparar tagliatelle caseiro.
Ao chegar na casa dela, nos arredores de Milão, havia sempre duas ou três bandejas de fios brancos de massa esticados, polvilhados com farinha para não grudarem e cobertos com pano de prato para não ressecarem e quebrarem. Só aguardavam o momento de a água ferver.
Parecia ser o prelúdio para um banquete, mas o que chegava à mesa era sempre decepcionante: uma massa cozida demais, sem aquela textura al dente que fez a fama da gastronomia italiana no mundo, e um molho ao sugo sem graça. Insípido, ácido.
Não dá para culpá-la: nascida numa família de origem humilde, numa pequena cidade siciliana, havia emigrado para o Norte da Itália nos anos 1950 em busca de fortuna.
Uma história parecida com a de milhões de italianos durante aquelas décadas de boom econômico, pós-segunda guerra, ou no final do século XIX e começo de XX quando outros milhões de emigrantes foram para Estados Unidos, Argentina, Austrália, Canadá, Brasil, entre outros países.
Criou cinco filhos, incluindo duas crianças com deficiência, e sua prioridade sempre foi colocar comida na mesa para todo mundo. Conseguiu até o fim da vida. Nonna Franca, sempre vou lembrar de ti, mesmo que não seja pela comida.
Gosto de imaginar que ela foi a exceção à regra, enquanto minha vó materna Pina era a prova viva que as nonnas são excelentes cozinheiras. Nascida em Milão em uma família de origem napolitana e lígure, apreciava uma boa comida e gostava de pilotar o fogão.
Dentre suas muitas iguarias, deixo registrado a lasanha à bolonhesa, o coelho assado com batatas, e o chiacchiere - um doce frito e polvilhado com açúcar confeiteiro, tradicional da época de Carnaval.
Contudo, suas almôndegas ao sugo eram de comer ajoelhado. O non plus ultra de seu cardápio. Ninguém conseguia reproduzir a maciez e o sabor daquelas perfeitas bolotas de carne que cozinhavam horas num delicado molho de tomate ao perfume de manjericão.
O molho de tomate era caseiro. Todo ano, em meados de setembro, quando o verão europeu estava prestes a terminar, meu vô Vincenzo comprava “un quintale” (equivalente a 100 kg) de tomates italianos, aqueles oblongos, bem maduros.
Ele, minha vó, minha mãe e meu tio passavam um fim de semana inteiro para preparar a passata. Primeiro, era preciso cortar os tomates em quatro; em seguida, eram espremidos numa máquina que separava o suco da pele e sementes.
A seguir, a polpa era engarrafada, as garrafas fechadas manualmente com uma tampa coroa e, por fim, colocadas num enorme tambor onde cozinhavam em fogo baixo por horas para pasteurizar e, assim, poderem ser armazenadas.
Eu, de calça curta, circulava pelo quintal e ajudava como podia nas tarefas em que não havia riscos para uma criança. Observava as etapas e respirava aquele ar de tomate cru e, depois, cozido.
Na segunda-feira, quando ia para a escola, ainda sentia aquele aroma nas narinas. Mesmo após vários banhos, ficava impregnado por uma semana. Era bom, mas era ruim. Sempre me perguntava se outros sentiam que eu estava cheirando a tomate. Nunca ninguém comentou nada.
Depois de esfriadas, as garrafas eram estocadas no porão de casa e sempre que a família precisava de polpa de tomate, minha mãe pedia para eu descer buscar uma. O estoque durava um ano inteiro.
No final do verão seguinte, o processo se repetia. Uma tradição familiar que continuou enquanto meu avô esteve com saúde. Mais de 20 anos depois, os equipamentos ainda estão guardados num paiol. Envelhecendo.
Uma receita de polpettas ao sugo
Minha mãe tentou muitas vezes reproduzir a receita de almôndegas ao sugo da minha vó Pina, mas, apesar dos esforços, nunca conseguiu alcançar o nirvana gastronômico daquele prato icônico.
Perdi as contas de quantas vezes perguntei para ela: “Mãe, tuas almôndegas são ótimas, mas por que não ficam tão boas quanto às da nonna?”. “Não sei, filho. E olha que compro a mesma carne no mesmo açougue que ela”. Após muitas tentativas fracassadas, minha mãe desenvolveu uma deliciosa receita própria.
A principal dica é calcular com precisão a quantidade de queijo parmesão e farinha de rosca que devem ser misturados na carne. Se antigamente, ela fazia no olhômetro, agora ela pesa tudo, como uma cozinheira profissional: o queijo e o pão devem representar, cada um, 10% do peso da carne, e deve-se calcular um ovo a cada 500 g de proteína.
Atenção porque a farinha de rosca não deve simplesmente ser adicionada aos demais ingredientes, mas é preciso pegar um pão amanhecido, deixá-lo alguns minutos de molho no leite (em substituição pode-se usar água, mas perde-se em maciez e sabor), e, por fim, espremê-lo para retirar todo o líquido. Com as mãos esmaga-se o pão e misturam-se as migalhas à carne.
De resto, só adicionar sal, pimenta-do-reino e salsinha fresca picada a gosto. Nada de alho porque ela nunca gostou de sabores fortes, nem outros temperos que não fossem típicos da cozinha mediterrânea.
Na hora de moldar as bolinhas, outro macete: não deve-se apertar muito com as mãos, para não compactar demais a carne, o que vai fazer com que as almôndegas percam suculência e maciez. Sobre o tamanho, não sei precisar muito bem, mas elas não são muito grandes, nem muito pequenas.
Chegado nessa etapa, você tem dois caminhos a percorrer: cozinhá-las diretamente no molho de tomate - como minha vó fazia - ou fritá-las antes para ficarem crocantes por fora. Experimente as duas formas e escolha a sua favorita.
*Andrea Torrente é jornalista, sommelier de vinhos e cozinheiro. Nascido e crescido na Itália, há muitos anos mora no Brasil.