A Xepa, com André Bezerra e convidados

A Xepa, com André Bezerra e convidados

A Xepa

A mortadela da Sophia Loren

11/08/2025 16:36
Thumbnail

A receita oficial da “mortadela” tem uma história quase que sagrada. Claudio Caridi.

A receita original da mortadela de Bolonha tem uma história quase sagrada, pois foi protegida graças a um cardeal, em 1661.
Por Dante Mendonça*
Desde sempre algumas dúvidas acompanham o famoso e agigantado pão com mortadela do Mercado Público de São Paulo: seriam os suínos brasileiros bem diferentes dos suínos italianos? Ou seriam os nossos “porquinhos vira-latas”, enquanto os “maiali di razza pura” ostentam diploma de doutorado da Universidade de Bolonha, a mais antiga do mundo?
Bolonha é justamente assim conhecida: “La Dotta; la Grassa; la Rossa”. “Dotta” por sua antiga Universidade, de 1088; “Grassa” por sua comida; “Rossa” pela cor de seus palácios e pela cor de suas bandeiras políticas. Independentemente de qualquer ideologia, na Emilia Romagna a mortadela está no cardápio de todas as classes sociais, com variações na forma de servir, junto com “ciccioli” (torresmo), “culatello”, o presunto de Parma, ou uma seleção de queijos como o Parmigiano Reggiano. Comer um pão com mortadela é motivo de orgulho, tão importante quanto a “pasta fresca” com “ragù alla bolognese” – o nosso popular “macarrão à bolonhesa”.
Especialmente na Piazza della Mercanzia, os turistas fazem a festa na Piazza Maggiore, se acotovelando pelos estreitos “vicolis", nas dezenas de pequenos bares e restaurantes com mesinhas na rua, com destaque para a Salumeria Simone, onde a receita original da “mortadella” está devidamente emoldurada na parede – ao lado do enorme poster de Sophia Loren no filme “La Mortadella", produção de Carlo Ponti em 1971, com direção de Mario Monicelli.
Sophia Loren é Maddalena Ciarrapico, uma operária de uma fábrica de salames na Itália que vai para Nova Iorque se encontrar com o noivo, e leva para ele de presente uma das joias da coroa italiana: uma mortadela gigante que fica detida na alfândega, por causa de uma lei americana que controlava a importação de embutidos. O caso acaba tomando uma proporção enorme quando um repórter (William Devane) faz uma matéria explorando o assunto, chamando a atenção da população e dos políticos. E chamando atenção, como não podia deixar de ser, para a preciosa “mortadella” de Sophia Loren.
A receita oficial da “mortadela” tem uma história quase que sagrada, pois foi protegida graças a um cardeal visionário. Em 1661, o Cardeal Farnese emitiu um decreto em Bolonha que estabeleceu oficialmente a receita da mortadela e garantiu sua proteção. Enquanto tudo no mundo ainda estava em exploração pelos sete mares, o borgo bolonhês já se preocupava em proteger o que ia à sua mesa. Esse decreto, chamado "Bando e provisione sopra la fabbrica delle Mortadella e salami", proibia o uso de carnes que não fossem de porco e estabelecia regras precisas para a produção. Basicamente, trata-se de uma versão do século XVII das modernas certificações de origem controlada. O Cardeal Girolamo Farnese entendeu que a reputação gastronômica de Bolonha merecia proteção oficial, criando assim o primeiro exemplo no mundo de proteção alimentar vinculada ao território.
O decreto proibia o uso de carnes que não fossem de porco e confiava à guilda Salaroli o controle de qualidade, com direito a selos. Quem o violasse? Penalidades severas. O objetivo era claro: proteger a qualidade e a autenticidade da mortadela bolonhesa de fraudes que ameaçavam sua reputação. Mesmo naquela época, produtores desonestos tentavam explorar o nome!
Joia da coroa na gastronomia italiana – internacionalmente reconhecida como uma iguaria cinco estrelas – “la vera mortadella emiliana” é feita apenas com os melhores e mais selecionados cortes de carne de porco, o que lhe confere uma cor rosada natural. Além disso, a gordura provém exclusivamente do pescoço do porco, tanto pela sua dureza quanto pelas suas características de paladar superiores em comparação com a gordura de outros cortes.
A “mortadella” clássica prevê apenas sal, pimenta em grão, pimenta branca, alho e uma porção de conservante extremamente limitada. Entre os outros ingredientes possíveis, destaca-se o mel de acácia, que realça todo o seu sabor. Característica única da “mortadela” clássica é a proteção com pele de porco. Não com tripa bovina ou filme plástico, mas simplesmente pele natural, costurada à mão. Isso permite que as características do produto fresco, seus aromas e todos os seus sabores permaneçam intactos.
Nos diz o livro de Maria Grazia Perugini, “È facile vivere bene a Bologna”, que a requintada “mortadela” é mais apreciada pura, fatiada finamente, mas não muito fina: não deve derreter na boca, apesar do gosto de algumas pessoas, mas deve manter uma certa consistência no paladar. Ou, e essa é a sua perfeição, colocada no meio de uma roseta (pão) crocante para um sanduíche clássico. Mas a mortadela picada também é um ingrediente fundamental na massa de “tortellini”, e a mortadela em cubos acompanhada de lascas de Parmigiano Reggiano é um aperitivo decididamente tentador. Em suma, é um ingrediente verdadeiramente versátil que pode ser apreciado de mil maneiras diferentes.
A naturalidade da carne curada, a “Mortadella da Sophia Loren”, tem suas raízes numa brilhante intuição de mais de 350 anos atrás. O Cardeal Farnese entendia que proteger a excelência exigia regras precisas e controles rigorosos. É por isso que quando comemos a “mortadella Bollogna”, estamos desfrutando o fruto de uma das primeiras leis de proteção alimentar do mundo.

La prosciutteria

A comida raiz de Bologna, com "prosciutto di Parma", "mortadella Bologna" e demais delícias da Emilia Romagna são servidos na Prosciutteria, na Via Guglielmo Oberdan, 12. Depois de uma respeitável fila, você faz o seu pedido diretamente no caixa, paga no ato, senta-se numa mesa compartilhada e aguarda em torno de 10 minutos para pegar o pedido no balcão. Talheres de plástico e nenhum serviço a mais. Recomendo o "Tagliere Gourmet: “4 tipi di salumi, 3 tipi di formaggi, 3 tipi di crostini, 2 salumi speciale, 1 formaggio gourmet, e 1 crostino speciale, verdura al forno, conffetura, miele e frutta di stagione". A 10,90 euros por pessoa.

Vinho da casa, comida de fora

No coração de Bolonha, sobrevive uma tradição medieval que desafia todas as regras da gastronomia moderna. A Osteria del Sole serve vinho continuamente desde 1465 – sim, você leu certo, desde 1465. Pense nisso: quando Colombo ainda sonhava em chegar às Índias, esta pousada já recebia sedentos bolonheses.
Mas o que é realmente incrível? Neste local histórico você não encontrará cardápios, chefs ou cozinhas. Você só bebe o vinho da casa e tem que levar a comida. Coisas que você não acreditaria em 2025, mas esse modelo já funciona há mais de meio milênio. Os clientes compram queijos, mortadela e especialidades nas lojas do quadrilátero da Piazza della Mercanzia e depois se sentam na Osteria para acompanhá-los com uma boa taça de Sangiovese – o vinho da Emilia Romagna.
É como um piquenique em ambiente fechado com cinco séculos de história, uma experiência de convívio autêntico que Bolonha guarda com zelo. Um pedaço de história viva que continua desafiando o tempo e as convenções.
*Dante Mendonça é escritor (da Academia Paranaense de Letras) e aquarelista. Em maio/abril de 2025 passou uma temporada em Bologna pintando aquarelas, descobrindo as nuances do vinho Sangiovese e se deliciando com a “Mortadella de Sophia Loren”.