

A Xepa, com André Bezerra e convidados
A Xepa
A mesa, a fome e eu: reflexões em torno da mesa

Mais do que refeições: a mesa como espaço simbólico de crescimento, escuta e convivência familiar. Crédito: Jovan Geber.
Por Duda Ortiz.
Já escutei por aí que muitas famílias faziam exatamente igual a minha: o almoço só começava quando o pai chegava do trabalho e todos, juntos, sentavam-se. A mesa da minha casa era “o sol”, o epicentro das erupções e convicções. Era o único momento do calor total e da reunião completa de nós.
À época, eu era algum planeta, ainda sem nome, de órbita atrapalhada. À mesa, sempre fazia quase tudo errado. Sentava com uma perna cruzada sobre a outra, usava a faca quando não precisava e substituía, com frequência, o garfo pelas pontas dos dedos.
Além disso, comia demais, misturava toda a comida, recusava salada. A boca, então, me causava os maiores problemas. É que ela nunca soube esvaziar antes de dar opiniões. A pressa, o arroz, o feijão, a carne, as broncas intermináveis dos meus pais. Dos menus, em si, não tenho muitas lembranças.
Criança, eu pouco compreendia das preocupações adultas do meu pai e da minha mãe. Quando entendia, logo me distraía em minha animosa existência e errava tudo de novo. Era, justamente, à mesa que eu errava mais do que em qualquer outro lugar. É que, para mim, a mesa, sendo o espaço mais íntimo da casa, deveria ser o lugar onde nós todos apareceríamos por inteiro.
Nunca me fez sentido o roteiro: começávamos como os pratos de comida, intocados, e terminávamos assim também. Eu imaginava outro enredo. Queria ser revirada, remexida, provocada e acabar a refeição como um prato de macarrão que foi plenamente saboreado. Sentia a vontade infantil das conversas sem rumo, em que ninguém precisa entender nada mas, ao fim, todos nos entendemos.
Passado o tempo, ainda adolescente, fui morar sozinha em outra cidade. Nessa época, costumava almoçar no restaurante à quilo, em frente ao meu apartamento. Durou pouco. De início, me sentia empolgada. A mesa seria só minha e eu escolheria, enfim, a comida que queria e comeria do meu jeito. Mas era tarde demais. Sentada, pensava em como as pessoas me viam, em como impressionar a senhora de cabelos bonitos que sentava a duas mesas de distância e lembrava minha mãe. O sujeito havia virado objeto. Parecia tarde demais.
Li, não faz muito tempo, que só nos tornamos adultos quando perdemos o medo de errar. Eu, no entanto, vivendo essa vida que gravita em torno de uma mesa, me senti adulta - pela primeira vez - quando constatei que sentia fome. Senti que eu era gente grande quando montei meu prato sem olhar para o lado, sem pensar em ser aprovada, quando mastiguei com vontade e sem culpa. Mas, quem sabe dizer exatamente quando isso acontece?
Um dia desses, anos transcorridos, sentei diante de uma mesa de dez lugares, todos tomados. Em meio a conversas, risadas, lábios “pintados” pelo vinho tinto, provei o sanduíche de brisket preparado pelo meu pai e minha irmã. Senti a crocância do pão francês, senti os pequenos pântanos formados pela mistura do miolo e do molho de pimenta cremoso. Saboreei a carne suculenta que se desmanchava em infinitos fios, e pensei nas doze horas que ela levou até cozinhar em fogo brando. Senti o vinho tinto escorrer, quente, até meu peito. De boca fechada e pernas cruzadas, olhei em volta. A comida, os amigos, o amor, a família, a bagunça e eu. A mesa era igual a de sempre, mas infinitamente maior: o sol.