A Xepa, com André Bezerra e convidados
A Xepa
A arte de comer demoradamente
Por André Bezerra
Uma Crônica em Defesa do Alimento, do Universo e da Delonga
Se, por um lado, meu apetite sempre despertou a curiosidade das pessoas, por outro lado é a curiosidade que, deliberadamente, desperta o meu apetite. Do modo como enxergo o tema, a preguiça é uma virtude que Deus presenteia os seres mais bem aventurados. O hábito de dedicar longas horas à mesa, numa refeição, me parece tão necessário como é, para um panda, dedicar seus dias a roer bambu e rolar pelas florestas geladas da China. Essa mania de roer é outra coisa que tenho em comum com o urso, embora num sentido mais figurado. Roer, à mesa, significa comer aos poucos, deixando-me capturar, lentamente, por nuances como sabor, temperatura, consistência e outras características dos alimentos. Diante de uma boa refeição, aprecio as delongas.
Fora da mesa, por exemplo, sou capaz de empregar uma tarde entre árvores frutíferas, sob a sombra, perambulando como um esquilo ou espreitando feito um lagarto. Não resisto a uma goiabeira carregada. A natureza é maquiavélica e reserva as melhores frutas, mais maduras, doces e perfeitas, às criaturas que conseguem atingir a parte mais alta dos pés, repare. As goiabas que dão nos galhos mais baixos são menores, mais pálidas, menos graciosas. Deixo estas para os vermes ou bichos mais sorrateiros. Prefiro escalar pelos galhos em direção ao céu, em meio ao buquê perfumado, disputar com os beija-flores. Lá do alto, deixo o tempo passar, atiro as sobras e rejeitos ao chão.
A minha xepa é um festim para pequenos bandos de pardais e sabiás. Também sou um exímio colhedor de amoras. Encontro o meu caminho em meio à folhagem da amoreira, cuidadosamente. Com as pontas dos dedos, separo as folhas como cachos nos cabelos de uma menina. Gosto dos espinhos. Eles mantêm os apressados longe das frutas mais doces. Utilizo estes espinhos como ganchos para atrair os galhos. Alongo os braços e recolho as amoras das extremidades mais distantes. Trago as frutinhas inteiras até a boca, mancho as mãos. Somente os impacientes sacodem o pé para recolherem as frutas mais fracas do chão. Desastrados, pisam nelas. Eu prefiro me unir à árvore.
Roer, à mesa, significa comer aos poucos, deixando-me capturar, lentamente, por nuances como sabor, temperatura, consistência e outras características dos alimentos. Diante de uma boa refeição, aprecio as delongas.
Sou assim à mesa, gosto de desvendar cada etapa da receita. Imaginar que faço parte de um capítulo importante da refeição diante de mim é tão fundamental quanto o ato de mastigar. Quantas etapas, conhecimento, técnicas, ciência e segredos até o prato. Por trás daqueles preparos, algumas expectativas frustradas, mas, na maior parte, tentativas bem-sucedidas. Quantas histórias a serem contadas?
A estrada, o lombo do animal, alqueires, quilômetros, quantas vidas no campo e na cidade. A chuva, o sol, a lua, as marés e a dança das estações. Calor, frio, o baile celestial das estrelas, o movimento silencioso dos planetas. Tudo acontece lentamente, numa cronologia milagrosa e divina, entre dias e noites. Ao final dessa extensa linha de tempo, estamos eu e o prato.
Garfo e faca nas mãos, resta-me comer devagar.