Fernanda Massarotto
Jornalista, paulistana. Não sei cozinhar, mas adoro comer. Moro há 15 anos em Milão, no norte da Itália. Pedalo pelas ruas com minha bicicleta vermelha em busca de novidades da cidade, especialmente as gastronômicas.
À milanesa
Avessos ao delivery, chefs estrelados apostam em novas receitas e mesas ao ar livre para driblar a crise
Em uma recente entrevista Gwendall Poullenec, 40 anos, há dois diretor internacional do Guia Michelin, afirmou que a pandemia veio para mudar até mesmo os rigorosos requisitos da famosa bíblia da gastronomia mundial. "Veremos restaurantes estrelados que irão passar a oferecer os serviços de take-away ou delivery. E nós, como guia, reconheceremos a qualidade dos pratos, seja ele servido no restaurante ou não", relatou o francês ao caderno Cook, do jornal italiano Corriere della Sera.
A mudança alardeada por Gwendall Poullenec já é uma realidade em alguns países e nomes como o do chef René Redzepi, duas estrelas com o seu Noma, em Copenhagen, anunciou que o tradicional hambúrguer fará parte do seu requintado menú. A pergunta que não quer calar é: os restaurantes estrelados irão se render a um cardápio simples? A resposta varia e muito. Mas a grande maioria ainda acredita que a alta gastronomia deva ser preservada. "Ir a um restaurante estrelado faz parte de um ritual. É mais que degustação. É um prazer", comenta Pietro Leemann, chef suíço, que comanda o Joia, único vegetariano na Itália a contar com uma estrela Michelin. "Por trás de um prêmio do gênero, há uma filosofia adotada pelos chefs. Pratos elaborados, ingredientes escolhidos a dedo, muito estudo e até muita reflexão".

A reflexão a qual se refere Leemann virou quase um lema entre os seus colegas. Com as portas fechadas por mais de 3 meses, de 11 de março a 13 de junho, os restaurantes italianos, estrelados e não, tiveram de adotar medidas criativas para resistirem à crise. De acordo com a Fipe (Federação Italiana de Serviços Públicos) no mês de junho, o faturamento dos restaurantes e bares ficou abaixo do esperado, cerca de 50%, e dos proprietários entrevistados, somente 18% estão satisfeitos com os resultados da reabertura.
Alta Gastronomia X Delivery

Crise para uns, oportunidades para outros. O medo de frequentar espaços públicos e evitar aglomerações devido aos riscos de contaminação parecem não assustar o italiano. A prova disso é a adesão a um estilo informal: mesas a céu aberto. O menu vegetariano, leve e saudável de Pietro Leemann agora pode ser degustado também ao ar livre. "A pandemia nos ensinou que comer bem é uma necessidade. Frutas, verduras e legumes são tão saborosos quanto outros alimentos. Nunca se deu tanta atenção aos ingredientes e como são preparados", observa o chef estrelado que durante a quarentena se refugiou em sua casa de campo na Suíça, criou novas receitas e se valeu das mídias sociais para divulgar um pouco da sua culinária saudável.
O recesso da vida agitada dentro das cozinhas foi também frutífero para outros dois chefs italianos. O ítalo-holandês Eugenio Boer, premiado com a sua primeira estrela Michelin, em 2017, no comando do Essenza, fechou o seu badalado Bu:r e se dedicou a cozinhar para a mulher Carlotta. "Pela primeira vez pude parar e viver uma rotina tranquila", conta ele que acabou dando vida a um serviço de delivery para a região metropolitana de Milão. "Minha culinária tem um pouco de tudo. Digo que se contamina até porque vive sempre entre a Holanda e a Itália. Revisitei muitas das receitas e decidi que irei continuar com um cardápio diferenciado para quem não quiser sair de casa".
Boer porém adverte que a alternativa não deve ser vista como uma extensão do que ele oferece no seu restaurante de alta gastronomia. "É preciso deixar bem claro que no Bu:r o cliente tem acesso ao que chamamos de culinária fine dining, única e exclusiva. O que propomos no delivery são pratos mais simples ou seja, os tradicionais da cozinha italiana como macarrão com massa fresca ou a pappa al pomodoro que é feita de pão envelhecido e sobras de molho de tomate", complementa o ítalo-holandês que não teve problemas em instituir as regras de prevenção contra o vírus impostas pelo governo. A capacidade, 20 pessoas, foi mantida já que o restaurante sempre optou por ter poucas mesas, 7. "Em relação ao distanciamento social não houve problemas. O layout foi concebido com vasta distância para manter a privacidade".

Assim como o colega Boer, Enrico Bartolini, não sofreu com a redução de lugares em seu estreladíssimo restaurante localizado dentro do MUDEC, o Museu da Cultura de Milão. O chef, nascido na Toscana, foi o único italiano a ser premiado no final do ano passado pela Michelin com a terceira estrela. Um recorde, fruto de muito trabalho, curiosidade e, é claro, talento. "Respeitar o distanciamento jamais nos preocupou. Nosso ambiente é muito íntimo com apenas 8 mesas bem separadas. Obviamente, nossos garçons e maitre passaram a usar máscaras e luvas para que os clientes se sintam seguros", explica o italiano que contabiliza 8 estrelas, 5 delas por locais abertos por ele próprio.
Em um território povoado por grandes nomes como Carlo Cracco, Andrea Berton e Massimo Bottura, o jovem Enrico se destaca por uma culinária clássica e tradicional com uma visão contemporânea. Nos mais de dois meses de lockdown, ele se refugiou em sua casa. "Há mais de 25 anos, entre escola e trabalho, jamais havia tirado férias tão longas", confessa ele. "O dia-a-dia de um chef começa cedo e termina muito tarde. Sempre na cozinha. Voltei a fazer minhas compras, fiquei mais tempo com meus filhos e passei a preparar almoço e jantar...ou seja, passei a cozinhar para mim".
Reflexões a parte, Enrico Bartolini se mostra confiante com o futuro do seu restaurante. E acredita que os colegas estrelados terão menos dificuldade em contornar a crise. Tudo graças à alta gastronomia. "Nossa filosofia é satisfazer o cliente com criatividade e originalidade. A ida a um restaurante, principalmente premiado, não se resume somente ao que oferece em matéria de culinária. Conta também o serviço e o ambiente. Uma experiência exclusiva", relata o chef que não compartilha da ideia de incluir o sistema de entregas em seu local.