A Xepa, com André Bezerra e convidados
Vozes
A Garota de meias
André Bezerra
A visão no espelho era emblemática: pelo chão, um par de chinelinhos de inverno, tipo pantufas, daquelas que se compram na feirinha de domingos do Largo da Ordem. Ao redor da cama havia ainda algumas folhas de papel sulfite, uma caixa de lápis, uma embalagem esvaziada de lenços de papel e um moleskine. A capa do caderninho estava marcada pelo uso. Ele fazia vezes como caderno de anotações, às vezes agenda e, frequentemente, diário. Na desordem havia também duas ou três revistas abertas em páginas aleatórias, um livro da Giovana Madalosso, um Fernando Pessoa, uma edição pocket book - em inglês - de On The Road, do Kerouac, e uma coletânea de crônicas do Luis Henrique Pellanda. Os dois últimos foram presentes meus para ela, leitora muito voraz e pouco ortodoxa. Estava tudo espalhado pelo chão.
Havia um travesseiro que escorregara da cama e permanecia em pé, escorando o edredon branco que despencava até o carpet, feito uma cascata de algodão. Um pouco mais distante, uma pequena lixeira; era o destino das bolinhas de lenço de papel. Todas haviam sido, em algum momento, perfeitos lenços virgens, delicados e perfumados. Sacados inesperadamente de dentro da caixa de papelão, eram levados pelas mãozinhas sôfregas até um nariz cor-de-rosa que fungava e escorria furiosamente, sem oferecer trégua à Garota. Ela puxava um lenço atrás do outro, assoava o narizinho-cachoeira e atirava as bolinhas de papel. O trajeto desenhava uma elipse aérea e imaginária, começando na cama e terminando próximo à lixeira. Nenhuma bolinha chegava ao interior do cesto. Esta era mais uma das coisas que enfureciam a Garota deitada sobre a cama: a falta de mira, de força, de sorte. Cada bolinha que caía fora, uma expectativa frustrada, um desenho inacabado, rabisco inútil, rascunho de traços apenas, sem figura, emoção ou sentido.
No reflexo do espelho, a visão da Garota deitada de bruços sobre a cama. Concentrada num tablet, os dedinhos se revezavam entre a rolagem dos perfis na rede social, os lenços e, sobretudo, o trabalho de pinça em uma caixa de bombons ao lado dela. A Garota tinha uma relação peculiar com chocolate. Quando tudo ia muito bem, comia pra comemorar. Não precisava de muito, equilíbrio gera equilíbrio. No dia-a-dia, evita. A dieta é proibitiva e, para não exagerar, o mais seguro é manter distância. Para dias mais sombrios, um caminhão carregado de bombons de chocolate é pouco. Em forma de bombons ou de barrinhas, ao leite ou amargo, cacau, para ela, é vida.
Tudo isso era possível enxergar através do espelho sobre a parede do quarto da Garota. Tanto quanto era possível ver o contorno do brilho bem aplicado sobre os lábios, o camisão de ficar em casa e as meias de lã a abrigarem os pés. Aquelas meias haviam sido outro presente meu e ela só as calçava dentro de casa.
No mais, o jeito dela brincar com os bombons, girá-los com as pontas dos dedos, levá-los até perto do nariz, sentir o aroma antes de metê-los na boca, mordê-los, deixar derreter. Por causa do chocolate, ela fechava os olhos e sorria entre lágrimas. O resto era uma confusão. Memórias e porvir, existe uma linha divisória? Largada, chegada, um sinal verde, um apito final. Cadê o árbitro da partida, um juiz de linha? Não tem VAR?
A Garota buscava, nas linhas de tempo do instagram, sinais flagrantes de que todos estavam em algum relacionamento enquanto ela estava sozinha há muito tempo. A sensação de liberdade em meio à melancolia da solidão, o sorriso entre lágrimas. Todo aquele niilismo, o tédio e a fúria regados a chocolate, lenços de papel, uma cama grande, meias de lã, livros, travesseiros e um edredom.
Para mim, era angustiante olhar o reflexo dela estirada naquela cama, muda e pensando em mil maneiras de gritar para o mundo que não precisava de nada e nem de ninguém. Eu sentia fome diante da miséria dela. Na outra ponta, a Garota se bastava com os livros e com os pensamentos. Um bocado de chocolate não mataria, ela exterminava as carências com brigadeiro feito em casa e com banho quente. Depois do banho, uma roupa confortável, meias de lã e um livro de um bom autor. Eu sabia disso. Conhecia cada nuance mais efêmera da personalidade dela. O meu papel era o de mantê-la agasalhada nos pés e na linguagem. Eu procurava cuidar para que não parasse nunca no tempo, não pensasse que o mundo era aquele quarto ou a cidade, o “carretel infinito” das redes sociais. A vida não estava contida naquele tablet.
As pessoas e os lugares poderiam estar descritos de várias formas nas histórias dos livros, mas não poderiam ser vividos através das páginas. Era, para mim, um ofício natural preservar a paz em todos os mundos que orbitavam em torno da Garota sobre a cama. Não me escapava o fato de ela se sentir tão sozinha, às vezes abandonada. Sentir-se assim fazia parte dela, era mais uma pequena efemeridade a preenchê-la. A bagunça aconchegante pelo chão do quarto era tão familiar quanto a pequena confusão de pensamentos a se embaralharem na cabeça dela.
Fiquei parado à beira da porta, onde ela conseguia me olhar sempre que quisesse. O meu reflexo no mesmo espelho onde estava o da Garota. Os meus pensamentos no mesmo redemoinho por onde rodopiavam os dela.