Bom Gourmet
Utopia Tropical: a fantástica fábrica pós-punk de chocolate
“É porque eu sou isso”, assume Julian Caron Lys, franco-suíço que está há pouco mais de dois anos no Brasil, quando digo que a toda a estética da sua marca de chocolates artesanais chamada Utopia Tropical (site, embalagens e identidade visual) remete ao pós-punk. Esse subgênero do rock surgido na esteira do punk no fim dos anos 70, que na década de 80 ficou conhecido no Brasil como ‘dark’, contava com inspirações vindas da arte gótica, expressão artística da Idade Média, e da vida cinzenta e acelerada dos grandes centros urbanos.
A Utopia Tropical existe há menos de um ano. Está encravada no centro histórico de Curitiba, região boêmia da cidade. Loja e fábrica funcionam juntas, em um espaço pequeno na Rua São Francisco, 179, de certo charme industrial, na entrada do refúgio urbano SFCO 179. Da loja, da parte da frente, vê-se nos fundos, através do vidro atrás do balcão, Vitória Nascimento e Gabriela Vieira, as responsáveis pela preparação artesanal das barras. Julian e Luan Pablo, gerente da loja e torrador, passam mais tempo na frente, atendendo clientes e explicando o conceito da marca.
Em setembro deste ano, a Utopia Tropical foi premiada no International Chocolate Awards, etapa Américas, uma das competições mais importantes da categoria. A premiação aconteceu em Nova York e foi transmitida pelo Zoom. A marca faturou a prata na categoria Microlote de barras de chocolate amargo simples/de origem, pelo Chocolate Intenso 72% Cacau (origem Rio Tocantins, Pará); e prata, com nota de 86.5, na categoria Barras de chocolate branco simples/de origem, com o Chocolate Branco 38% Manteiga de Cacau Selvagem (origem Rio Purus, Amazonas). A curitibana Cuore di Cacao, outra fábrica local e nome frequente em listas de premiados, faturou três medalhas.
Julian não trabalhava com chocolates na Suíça, país famoso pela iguaria e pelos relógios. Em sua terra natal, era proprietário de uma empresa de torrefação de cafés. Ao vender o próprio negócio, teve vontade de trabalhar com chocolate no formato bean to bar, de criar do zero. E entendeu que era possível pensar no chocolate como se pensa no café: no terroir, nas misturas de sabores, nas especialidades e em um certo ritual para degustar o produto.
“Foi um erro”, brinca às gargalhadas quando perguntado sobre o que lhe trouxe ao Brasil. Ele, aliás, chegou pela primeira vez ao país em 2016 vindo de Cherbourg, na França, de veleiro, aos 33 anos. Fez o trajeto Cabo Verde-Fernando de Noronha em 12 dias, sozinho, sem experiência de velejar. Foi ao Rio de Janeiro, passou um tempo na Bahia e se mandou para a Polinésia Francesa, passando antes pela Patagônia. Veio então a pandemia, e aí, lá mesmo na Polinésia, vendeu o barco e voltou ao Brasil para iniciar o que viria a ser a Utopia Tropical. Detalhes dessa história (textos, fotos e vídeos) estão em seu diário de aventuras marítimas Bleu de Perse (em francês).
Foi no Brasil que aprendeu tudo o que sabe sobre chocolate. “Cheguei sem nada, só com uma mochila e sem falar português”, recorda. Ele escolheu o país por ter gostado daqui e por saber que o mercado local oferece todas as pontas da cadeia, do produtor ao consumidor. Se fixou em Curitiba porque ouviu de gente do mercado, quando pensou em se estabelecer em Florianópolis, de que a capital do Paraná seria mais adequada também pelo clima. "E eu preciso do frio para viver", acrescenta.
O campo é fértil
Levantamento da Associação Brasileira da Indústria de Chocolates, Amendoins e Balas (Abicab) em parceria com a Consultoria KPMG aponta que o Brasil produziu 219 mil toneladas de chocolate no primeiro trimestre deste ano, salto de 9,8% na comparação com o mesmo período de 2022. Na Amazônia, a produção acontece basicamente no estado do Pará, que responde por mais da metade de todo o cacau do país e por 96% da região norte.
No ano passado, o consumo per capita de chocolate alcançou 3,6 kg no ano passado, contra 3,2 kg em 2021. Esse número, afirma a associação, cresce anualmente, mas ainda há espaço para mais. De acordo com a Euromonitor, a Europa lidera o ranking de consumidores, com a Estônia em primeiro lugar (9,5 kg por pessoa), seguida da Alemanha (8,4 kg), Áustria (8 kg) e da Suíça, de Julian (7,9 kg).
Produto sensorial, visual e artístico
“A proposta da nossa fábrica é fazer um chocolate do zero, com cacau brasileiro de pequenos produtores, do grão à barra (bean to bar)”, explica, com sotaque carregado mas em bom português. “A gente procura comprar diretamente de pequenos produtores um cacau cru, e transforma em uma barra de chocolate, com poucos ingredientes”, detalha. O Intenso, um dos quatro produtos fixos no cardápio da marca, conta apenas com cacau e açúcar. Já o branco é feito apenas de manteiga de cacau, açúcar e leite. Todo o açúcar utilizado nos chocolates é orgânico. Nada de glúten ou lactose. O cacau utilizado vem de pequenos produtores da região amazônica, especialmente do Pará, e também da região sul da Bahia.
“A Utopia Tropical é uma marca alternativa, um pouco cultural”, prossegue Julian. “Conceitual porque a gente quer também valorizar a cultura brasileira, e fazer collabs com artistas da cidade, para entregar um pouco mais do que uma comida. A gente quer entregar um produto sensorial, visual e artístico”, define.
O cardápio de produtos fixos da Utopia Tropical conta com o Inclusões, com 38% de cacau, que inclui matcha; o Intenso, nas versões 100% e 70%; o Branco, 38% e manteiga de cacau selvagem; o Dark Milk, ao leite, 60%; e o Mocha 55%, um colab com o Café Royalty. Em breve, Julian promete misturas com erva mate, para homenagear o costume do consumo na região sul do país, e com cataia, arbusto nativo encontrado nas regiões litorâneas do Brasil, tradicionalmente usado para a produção de cachaça. A loja conta ainda com cafés, bebidas feitas com o chocolate da casa e oferece degustação dos produtos.
Além da colab com o Royalty, também instalado no SFCO 179, a Utopia Tropical se juntou a dois artistas locais, Mariê Balbinot e Rimon Guimarães. Eles elaboraram as embalagens de itens da fábrica – os dois transformam as embalagens em papel cartão em pequenas obras de arte, peças colecionáveis, que emprestam aos produtos da fábrica experimental todo um conceito próprio, sensorial, como citou Julian. O Relevo, jornal literário independente já conhecido por quem frequenta bares, livrarias e bibliotecas da cidade, também virou parceiro: a publicação ganhou uma barra com seu nome, de chocolate Intenso 70%, e embalagem que parece ter sido retirada de alguma Graphic Novel.
O caminho contrário
A próxima meta de Julian é exportar. Para isso, embarca no fim de outubro para o Salon du Chocolat Paris 2023, com apoio da ApexBrasil (Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos), órgão do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços. Leva consigo algumas amostras dos seus chocolates experimentais, produtos 100% brasileiros. Se conseguir, fará uma espécie de caminho contrário: vem da Suíça para o Brasil, passa a produzir chocolate e então leva seus produtos para fora – o mercado de seu país natal é um dos alvos do trabalho.
Quando retomo, no fim de pouco mais de uma hora de conversa, o papo sobre música, Julian cita a banda francesa La Femme, surgida em 2010, os ingleses do grupo gótico Sisters of Mercy e a cena do rock industrial como influências (e, nessa hora, faz com os braços o movimento que ganhou o nome de air guitar). Isso explica muita coisa.
A Utopia Tropical funciona de quarta a sexta, das 12h às 19h, aos sábados, das 10h às 19h, e aos domingos, das 12h às 18h. Mais informações pelo site da fábrica e no Instagram @utopia_tropical.