Bom Gourmet
Típico bombom paraense ganha cobertura de chocolate fino, menos doce e sem gordura hidrogenada
BELÉM (PA) — Quem viaja ao Norte do Brasil volta sempre com uma bagagem extra. Pode ser um isopor lotado de garrafas de tucupi, açaí congelado, peixes e ervas locais, como o jambu. Ou pode ser uma carga menor e mais delicada, de igual valor: uma caixa com bombons recheados de doce de frutas e castanhas abundantes da Amazônia, o souvenir mais acessível e delicioso da região.
A força das bombonzeiras (como são chamadas as mulheres que fazem bombom) no imaginário do turista e no cotidiano do belenense é tão forte que o governo do Pará enxergou nas doceiras uma nova posição estratégica para divulgar o chocolate amazônico e aumentar seu consumo no mercado interno. “A bombonzeira é como a baiana do acarajé, uma personalidade em si”, define Luciana Centeno, engenheira de alimentos e coordenadora de mercado da Secretaria Estadual de Desenvolvimento Econômico, Mineração e Energia do Pará (Sedeme – PA).
Os bombons são encontrados à venda nos pontos turísticos de Belém, como o Pólo Joalheiro, as lojas de souvenires, feiras gastronômicas, feiras de rua (como aos domingos, na Praça da República) e no cartão-postal de Belém, o Mercado Ver-o-Peso, onde a unidade sai a R$ 1.
Há combinações exóticas como tucumã (polpa gordurosa do fruto de uma palmeira), uxi (fruto oleoso e farinhento) e jambu (a cocção da folha diminui o efeito de dormência na língua) ou as tradicionais cupuaçu, graviola e bacuri (frutas de polpa branca com um toque ácido), açaí com tapioca, castanha-do-pará, taperebá e coco.
O chocolate de cobertura, no entanto, passa longe de ter o sabor local. A preferência das bombonzeiras, por economia e facilidade, é pelas barras de cobertura fracionada, com muito açúcar e uso de gordura hidrogenada para substituir parte da manteiga de cacau. “Não é possível que no estado maior produtor de cacau nacional a gente esteja fazendo um produto da nossa identidade culinária com uma matéria-prima de tão baixa qualidade”, lamenta Luciana.
O chocolate amazônico ainda está sendo descoberto. Com variedades endêmicas (que só crescem na região), como o cacau forastero, colhido pelos ribeirinhos na várzea do rio, e também variedades híbridas desenvolvidas pela Comissão Executiva de Planejamento da Lavoura Cacaueira (Ceplac) e plantadas na floresta, os cacauicultores e produtores de chocolate especial estão unindo esforços para descobrir todas as possibilidades de expressão do fruto.
Há cinco anos, o Pará almejava passar a Bahia em produção. Conseguiu mais que isso: fez o Brasil entrar na lista de exportadores de cacau fino e de aroma, fruto do trabalho da Ceplac. “Todo o cacau fino exportado pelo Brasil em 2018 foi proveniente do Pará, cerca de 700 toneladas”, comentou Fernando Mendes, chefe de pesquisa da Divisão do Centro de Pesquisas do Cacau, da Ceplac.
Segundo o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, o Brasil colhe em média 250 mil toneladas de cacau por ano. Em 2018, o Pará teve uma safra de 116 mil toneladas e a Bahia, de 122 mil toneladas.
Órgãos públicos e de fomento ao empreendedorismo têm oferecido cursos de capacitação às bombonzeiras, para que cada uma possa desenvolver sua marca própria e seus produtos com mais autonomia, aumento de lucro e de valor agregado. O conteúdo costuma ir da história do cacau à técnicas de temperagem do chocolate e organização financeira.
Chocolate local, valor agregado
Preparar pelo menos um produto com chocolate paraense 70% cacau foi a condição imposta às 14 bombonzeiras que participaram da sexta edição do Chocolat Amazônia – Festival Internacional do Chocolate e Cacau. Os bombons foram vendidos a R$ 3 a unidade durante os quatro dias de feira, por onde passaram mais de 35 mil pessoas.
Os chocolates usados foram o 53% ao leite e o 71% de cacau, doados pela Chocolates Gaudens. “Conseguimos um valor melhor para a venda, mas o custo desse tipo de chocolate é alto”, avalia Maria Santana, bombonzeira da comunidade quilombola Abacatau, em Ananindeua, município próximo a Belém.
A opinião é compartilhada pelas colegas. “Essa estratégia de aumentar o consumo de chocolate amargo pelo paraense é interessante. O público já pergunta se é chocolate de origem, qual o percentual de cacau”, diz Gizele Guedes, da Ilha de Mosqueiro e integrante do Grupo Pôr-do-Sol, que reúne produtoras de bombom da região. Gizele prepara os doces há quatro meses. As dificuldades: acertar a temperagem do chocolate e conseguir uma matéria-prima de qualidade por um valor que caiba no bolso.
O alto custo do chocolate de origem é um entrave que Fábio Sicília, proprietário da Chocolates Gaudens e presidente da Associação de Produtores de Chocolate de Origem – Pará, subsidiou para o evento.
Transformar a amêndoa do cacau em um chocolate liso e apto para a cobertura de bombons não é barato nem simples. Requer equipamento que moa as sementes até se transformarem em uma pasta líquida e homogênea e uma área climatizada onde se possa dar choques de temperatura no chocolate – em Belém do Pará isso significa um ar condicionado ligado 24 horas por dia. Além, claro, de conhecimento técnico e não apenas empírico.
Outro lado do balcão
O trabalho de capacitação das bombonzeiras para que usem chocolate de origem é recente. Para se ter uma ideia, a primeira edição da feira de cacau e chocolate no Pará é de 2013. Mas tem dado resultados: “Algumas bombonzeiras capacitadas no início se tornaram produtoras de chocolate de origem e hoje expõem na parte dos chocolateiros”, explica Luciana.
Um exemplo é Izete Costa, a produtora de chocolate mais famosa do Pará. Dona Nena, como é conhecida a produtora da Ilha do Combu, era bombonzeira quando conheceu o chef Thiago Castanho, em 2011. Ela queria refinar seu chocolate para conseguir cobrir seus bombons e acabou descobrindo na barrinha rústica seu carro-chefe. “Resolvi fazer minha produção de bombom caseiro com meu próprio chocolate e não conseguia. Mas quando o Thiago chegou aqui, se apaixonou pelo nosso trabalho e pediu que a gente não refinasse”, recorda-se, rindo.
Sob a marca Filha do Combu e uma equipe de 11 funcionários, Dona Nena produz 15 produtos, entre eles a barrinha rústica, bombons, brigadeiros e barras de chocolate refinadas (com 55%, 70% e 85% de cacau). Recentemente acrescentou ao portfólio uma versão com leite, com chocolate produzido pela Gaudens Chocolate. Atualmente, uma média mensal de 20 quilos de chocolate rústico é vendido para o chef, que repassa aos colegas.
Mas não é todo mês que Dona Nena tem chocolate: o peso varia de acordo com a safra, de dezembro a março e de junho a setembro. No final de setembro, quando a reportagem esteve na Ilha do Combu, só havia frutos verdes nos cacaueiros de várzea.
*A jornalista viajou a convite da organização do Chocolat Amazônia Festival e Flor Pará 2019.