Tendências
A democratização do vinho pelas mãos e mentes de Gabriela Monteleone
jaqueta de lona preta com capuz, Gabriela Monteleone salta de um carro de aplicativo e se instala em uma mesa na área externa do<a href="http://<a href="https://bomgourmet.com/vozes/vosso-blog-de-comida/descobri-o-lemi/" >Descobri o Lemí, de Leminski, um bar inspirador em Curitiba <a href="http://Lemí Gastrobar<a href="http://<a href="https://bomgourmet.com/vozes/vosso-blog-de-comida/descobri-o-lemi/" >Descobri o Lemí, de Leminski, um bar inspirador em Curitiba, em Curitiba. Era o início da noite do dia 21 de maio, e a sommelière, que havia acabado de sair do Festival Coolritiba, na Pedreira Paulo Leminski, fazia uma pausa no bar antes de jantar no restaurante Manu, da premiada chef Manu Buffara.
"Não liga para isso aqui, não, acabamos trazendo do festival", ela indica para a garçonete, ao tirar do bolso uma lata de cerveja fechada. De cigarro em punho e com uma taça de tinto na mão, ela concedeu uma entrevista ao Bom Gourmet.
Gabriela chegou à cidade na noite anterior, no dia 20 de maio, para a inauguração do Five Lounge, bar anexo ao hotel NH Curitiba The Five, onde estão três torneiras de vinhos brasileiros selecionados por ela.
A iniciativa dos Vinhos na Pressão é um desdobramento da iniciativa Tão Longe, Tão Perto (TLTP), que começou nos primeiros meses da pandemia, com degustações online em que os consumidores assistiam a conversas mediadas por Gabriela, enquanto bebiam os rótulos dos produtores que apareciam na tela.
"Eu colocava as pessoas para conversar e mediava a conversa, puxando os temas principais. Falamos de cultura, de diferentes tipos de agricultura para vitivinicultura. Eu, enquanto sommelière, sou uma mediadora entre as pontas da cadeia", define.
As 60 edições renderam um livro, "Conversas Acerca do Vinho", a ser lançado ainda em maio.
O primeiro ponto a ter os barris de 20 litros de vinho engatados em torneiras foi o Carlos Pizzaria, em São Paulo, em meados de 2020. Dois anos depois, há quase 30 endereços no estado de São Paulo, cinco no estado do Rio de Janeiro, oito em Salvador e dois em Curitiba – além do Five Lounge, que é a flagship do projeto, os vinhos também podem ser encontrados na Ciao Salumeria Italiana, no shopping Novo Batel.
A proposta também permite que os consumidores abasteçam seus growlers de 1 litro nos pontos de venda. São três produtores do Rio Grande do Sul – cabernet sauvignon, branco e rosé lorena da vinícola Tizatto; um tinto sangiovese da Valparaiso, de vinhos naturais; uma cidra, da Companhia dos Fermentados (por enquanto só na cidade de São Paulo), e suco de uva da Marina Gallian. Nem todas as bebidas estão disponíveis em todos os pontos.
Sua terceira iniciativa durante os anos de isolamento social foi o Vinhos de Combate, em sociedade com o importador de vinhos Ariel Kogan.
Vinificados pelo premiado enólogo Luís Henrique Zanini, a marca apresenta vinhos tinto, rosé e branco embalados em bag in box, no volume único de três litros, que pode ser vendido para restaurantes ou consumidor final.
"Tento arrumar soluções viáveis para os gargalos que enxergo. Falar do pequeno produtor, do envase, da maneira de consumo, mas trazendo uma solução, e não só apontar para o problema", diz.
Formada em Gastronomia pela Anhembi-Morumbi, Gabriela é certificada pela Associação Brasileira de Sommeliers (ABS) e participa da formação de novos profissionais pela ABS-SP. Teve seu interesse pelo vinho despertado durante seu estágio na enoteca Acqua Santa, e trabalhou como sommelière no Ici Bistrô, Pomodori, e no Gero, do Grupo Fasano.
Desde 2011 como sommelier no D.O.M., do chef Alex Atala, hoje Gabriela é head sommelier e wine director do Grupo D.O.M. Ela também assina a seleção de vinhos dos restaurantes das chefs Bel Coelho (Cuia e Clandestino) e Gabriela Barreto (Chou e Futuro Refeitório).
Confira abaixo os principais trechos da entrevista:
Ao falar sobre as escolhas de vinho, você não fala só da complexidade do produto e das notas que ele tem, mas principalmente da história e da cadeia que ele representa. Seu trabalho seria um trabalho de uma curadoria de histórias, mais do que de sabores?
Não. Isso seria reduzir o vinho apenas à parte histórica, e o vinho é muito maior que isso. É toda a parte sinestésica, estética, história, política, cultura, noção de terroir. Meu trabalho é curadoria de vinho. Como um produto ancestral e uma das agriculturas mais antigas que a gente tem na humanidade, é um pouco natural que o vinho flerte e dialogue com essas outras frentes.
Isso parece ficar evidente no Tão Longe, Tão Perto, em que as pessoas tinham uma experiência sensorial de degustação on-line enquanto conheciam os produtores. Você acredita que essa seja a sua iniciativa que melhor mostre essa articulação que o vinho proporciona?
Eu sempre fiz isso, só que em outros ambientes. Onde fiz isso com mais força foi há muito tempo nas minhas pesquisas no D.O.M. e com a Bel Coelho, que de uma forma ou de outra acabam sendo mais restritas porque são restaurantes de pesquisa, que estão em um lugar específico, com menu degustação. Não é todo mundo que tem acesso a esse palco. O Tão Longe, Tão Perto é mais acessível por causa da plataforma, por ser on-line.
A maneira com a qual eu dialogo e falo do vinho é muito similar à maneira com a qual sempre falei nos projetos anteriores. Depois, com a consolidação do projeto com os vinhos na torneira, que é a curadoria de alguns produtores brasileiros com um valor mais acessível, continuo nessa toada de uma forma mais palpável, como um produto mesmo.
Mas a intenção é sempre a mesma: comunicar a história de alguém para a pessoa que está na outra ponta consumindo. Porque se tem uma ponta que pode mudar qualquer dinâmica, é a ponta de consumo.
Não adianta falar só com o produtor, só com os sommeliers, com os meus iguais e não explicar de uma forma abrangente para o consumidor.
Sobre fazer esse conhecimento circular entre essas pontas, o que você nota, nesses anos todos de trabalho, que o consumidor final ainda ignora sobre a cadeia de produção do vinho?
Acho que ele ignora muito a intenção do produtor. Nos últimos anos, a nova geração de sommeliers não está preocupada com a marca no vinho, e sim com a intenção, filosofia de trabalho e a noção de agricultura. É uma chave importante [para mudar] na forma de consumo. A gente ainda fala de vinho no Brasil como um produto estigmatizado e de elite.
O vinho não é considerado um alimento no Brasil por fatores históricos, até fatores de política pública, e é taxado como um produto descolado da base de alimentação, diferente do que você vê nos países europeus e até nos nossos vizinhos Chile e Argentina, que têm uma relação mais próxima e acessível com o vinho.
Aqui sempre esteve nesse lugar de unicórnio, de artigo de luxo, como se fosse uma bolsa da Gucci. A partir do momento que você enxerga um produto agrícola como artigo de luxo, você o priva de ser acessível. A busca agora é por dar força para a agricultura familiar, para a pequena produção, e não para o branding.
Colocar o vinho em uma torneira e não na garrafa, tem a ver com tornar esse produto mais acessível por volume?
A ideia de colocar o vinho numa torneira vem primeiro de uma vontade de inverter o maneirismo no consumo. Esse produto pode ser para o dia a dia, ser um vinho da casa. Tem uma preocupação forte com uma questão de sustentabilidade, de você diminuir a pegada de carbono: um barril de 20 litros equivale a umas 25 garrafas de vinho de vidro.
A reciclagem do vidro é muito mais difícil no Brasil e também muito danosa, gera mais pegada de carbono. É mais fácil você meter um vinho numa garrafa pet hoje em dia, que ele vai ser reciclado mais do que a garrafa de vidro. A gente tenta fazer o ciclo mais fluido, menos pesado e menos nocivo para o meio ambiente.
Eu te pergunto sobre tornar mais acessível porque, tanto Vinhos de Combate, por ser três litros em bag in box, quanto o vinho na torneira e até outras iniciativas, como vinho em lata, tem tentado trazer o consumo dessa bebida de uma forma mais descontraída.
A gente tem que tomar muito cuidado com esse conceito de descontraído, porque esse termo já está sendo usado há muito tempo, e ele é nocivo para o mercado, banaliza o produto. Um produtor que quer colocar seu vinho numa lata, num bag in box ou num barril, ele está olhando outras coisas que não só o "ser divertido" ou "ser diferente". Está olhando para sustentabilidade, ou pelo menos deveria estar olhando para isso.
É um pioneirismo, é uma quebra de paradigma, porque o grande consumo ainda é em garrafa. É mais acessível pelo modelo, pelo valor, pela conversa que se propõe, mas eu acho que tem essa história de sustentabilidade muito forte por trás.
A garrafa de vidro está cara, muitos produtores não envasaram vinho porque não conseguiram comprar garrafas, e teve um aumento de cerca de 20% no preço por isso.
Mas não tem como se fazer algo grande, que mude efetivamente o paradigma, pensando só numa vertente. Tem uma inversão de consumo, tem uma questão de a gente estar bem ajustado em uma realidade social e econômica no Brasil, em que as pessoas estão tomando vinhos mais baratos e têm uma abertura maior para o vinho nacional.
Os seus projetos têm um olhar para conveniências que não estavam sendo aproveitadas. Como você analisa seus projetos lançados desde o início da pandemia até a expansão dos vinhos na torneira chegando a Curitiba?
Todos os projetos vêm de uma insatisfação e inquietação com o que está ao meu redor. Tento arrumar soluções possíveis e viáveis para a gente pelo menos começar a falar dessas questões, dos gargalos. Falar do pequeno produtor, do envase, da maneira de consumo, mas com uma solução, e não só ficar apontando para o problema.
E aí colocar a proposta na avenida, não ficar só não falando "ah, porque isso tá errado, porque isso é ruim, porque a indústria não sei o quê".
Eu tenho um olhar de observação e de resistência. Eu caminho para esse lado já há algum tempo, eu sou insatisfeita com o mundo que eu vivo.
Se eu fosse satisfeita, eu seria totalmente alienada. Eu nunca vou pegar alguma coisa só porque é fácil de fazer.
Como está sendo a expansão dos vinhos na torneira? Quantos litros ou barris já foram servidos nesse projeto?
Estamos com três produtores de vinho do Rio Grande do Sul por enquanto. A gente quer expandir, mas é livre, porque a gente não quer criar demanda para o mercado, a gente quer absorver a demanda.
Então o que o produtor tem para me oferecer, eu absorvo, sem que ele tenha que reorganizar parte da sua cadeia produtiva para me atender. É uma relação mais fluida, não tem números do quanto o produtor precisa me entregar, por exemplo.
Eu não sei quantas caixas ou litros a gente já vendeu desses projetos, meu sócio deve saber. Mas eu prefiro não abrir. Eu protejo o projeto nesse momento, porque depois pode vir uma grande [empresa] e atropela a história. Por exemplo, eu também não falo de onde vêm as uvas do Vinhos de Combate.
Inclusive, no Vinhos de Combate, tem uma proposta que tira um pouco a "pompa" de beber vinho. Não digo que com isso eles não possam ser sensorialmente interessantes, mas a proposta é um vinho leve, para ser bebido jovem. Qual a intenção de vocês ao propor essa inversão no consumo?
A nossa intenção é colocar o melhor produto possível em um envase que seja inovador, acessível e sustentável. A gente não trabalha com vinhos menores nem com vinhos de entrada, mas pensados para o envase e para o projeto.
Eu não vou colocar um Romanée-Conti na torneira, não faz sentido, mas eu não vou falar que o rosé lorena que eu tenho na torneira é um vinho menor do que outro só porque ele tá na torneira. Ele é muito bem feito e ele se adequa totalmente à proposta. Cada coisa tem o seu propósito.
Os meus projetos são justamente para provocar. Se a pessoa quiser falar comigo sobre um grande vinho de Bordeaux, ela pode falar numa outra situação, num outro lugar, mas nos projetos não é sobre isso que eu falo.
Eu falo de agricultura, ética, regeneração, sustentabilidade, história, política pública, taxação. A gente fala de muita coisa, de momentos especiais, da relação que se tem com um rótulo específico, e às vezes fala pouco do organoléptico.
A análise sensorial é o mais superficial do vinho e o mais fácil de entregar. O cara pega um copo de vinho e fala: "frutas vermelhas, terroso, especiarias, médio corpo". [Para falar isso] ele não precisa ligar para o produtor, perguntar e saber como é que é região, perguntar o que aconteceu no ano de 2002, se teve uma nevasca…
O trabalho do sommelier é calcado em pesquisa, em saber a história do produto. A gente sabe que tem madeira só no aroma, a gente sabe se tem gasto ou não na fermentação só de sentir a textura, mas não é importante falar isso para todos os consumidores.
A gente entende o quão fugaz é a parte sensorial para o consumidor. Para ser eficiente [a comunicação], a gente tem que abordar as coisas palpáveis: a história, o lugar, a intenção e a filosofia daquela pessoa que fez o vinho.
Essa questão da origem do produto foi cooptada pelo marketing, lotando o mercado de produtos que se apresentam sob esse discurso mesmo sem terem isso na essência. Como se fazer ouvir nesse cenário?
A história da origem é algo ancestral. O marketing se valeu disso. Primeiro você tem que ter verdade. Eu tenho como grande norte do meu trabalho conhecer a pessoa que faz o vinho que eu apresento, saber quem ela é. Claro que tem vinhos que eu seleciono porque sei que é bom, porque conheço a proposta, mas eu não vou ter tanta intimidade com aquele produto.
Todos os vinhos que eu escolhi para o Tão Longe e Vinhos de Combate e todos os vinhos nas cartas dos restaurantes que eu cuido hoje são de pessoas que eu conheço, e a maioria deles eu posso chamar de amigos.
Pessoas que eu pego o telefone para falar "tô com problema na tua garrafa do 2012", e a pessoa é aberta e verdadeira o suficiente comigo para falar que teve outras pessoas com o mesmo problema. É muito importante ter essa troca para melhorar e deixar bonito o negócio [risos].