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Elas comandam: chefs paranaenses falam dos desafios para além da gastronomia
Historicamente, cozinhar era valorizado no âmbito familiar e privado, e uma atividade atrelada às mulheres. No final do século 18, o modelo de chef de cozinha, como uma profissão valorizada, e com certo glamour, começou a tomar forma na França. Surgiram então nomes como Marie-Antoine Carême, conhecido como o "chef dos reis", que cozinhou para famílias ricas, como os Rothschild. Na virada do século 19 para o 20, Auguste Escoffier renovou e popularizou técnicas da culinária francesa, e, em parceria com o hoteleiro César Ritz, virou sinônimo de boa mesa na Europa.
Logo, quando a cozinha tomou proporções econômicas importantes, as mulheres, sempre responsáveis pelo ato, foram mantidas no âmbito privado ou na retaguarda, não assumindo lugar de protagonismo.
Mesmo a gastronomia sendo ainda um ambiente bastante masculino (os cinco primeiros lugares do The Best Chef Awards 2021, considerado o Oscar da gastronomia mundial, são homens), as mulheres chefs vêm assumindo cada vez mais protagonismo. Seja nas grandes premiações (na edição do prêmio, a chef curitibana Manu Buffara ficou no 21° lugar) ou como empresárias que tocam os seus negócios sozinhas.
Em Curitiba, desde que pioneiras como Flora Madalosso Bertolli, matriarca da Família Madalosso, que se dedica ao ofício há mais de cinco décadas e é a responsável pelo império gastronômico construído pela família de imigrantes italianos, começaram a atuar no meio gastronômico, muita coisa evoluiu. Hoje, as mulheres chefs são cada vez mais atuantes e assumem papel de destaque na cena gastronômica paranaense.
O Bom Gourmet conversou com profissionais que estão entre as melhores chefs paranaenses se dedicam ao ramo na cidade para saber como elas enxergam a profissão, quais as evoluções do espaço feminino nas últimas décadas e os desafios que o ofício impõe.
Mulheres chefs e donas dos seus negócios
Formada em Direito, a chef e dona do restaurante K.sa, Claudia Krauspenhar, deixou Foz do Iguaçu e a sua primeira formação para morar em Curitiba e estudar Gastronomia no ano de 2005. Ainda estagiária como estudante do Centro Europeu, auxiliou chefs de cozinha, passou uma temporada em São Paulo e depois assumiu como chef do Edvino.
Posteriormente, virou sócia do antigo Vin Bistrô, que ela transformou no K.sa em 2018, quando comprou a parte dos antigos gestores e assumiu a gestão e a cozinha.
"Fiquei sozinha e fiz tudo o que eu acreditava que precisava ser feito. Mudei o nome, decoração e cardápio, para começar uma nova história", relembra Claudia, enquanto manejava o fouet ao fazer massa de blini (panquequinhas russas), em seu dia de folga.
Assim como todo o setor, a chef precisou realizar diversas adaptações para continuar com o negócio durante o período mais agudo da pandemia. Por mais que, em poucos meses, tenha dobrado o faturamento em comparação com o antigo Vin Bistrô, Claudia tinha acabado de sair de uma reforma e de empréstimos.
As estratégias com delivery, novos pratos e o cuidado com as entregas levou o K.Sa adiante e, só naquele ano, o restaurante concorreu a nove prêmios."Conseguimos superar. E foi algo importante para me reafirmar como chef e empresária", conta.
Mulheres chefs por elas mesmas
Ser dona do próprio negócio, sem sócio nem investidores, é uma das maiores evoluções que a chef Manu Buffara enxerga para as mulheres que atuam na área de gastronomia em Curitiba.
"Se formos falar de uns dez anos atrás, tínhamos poucas mulheres. E elas se tornaram empresárias que, como eu, sou dona e chef: não tenho investidor, nem sócio. Além de ser mãe e cozinheira", diz Manu.
Hoje, a chef e empresária está à frente de quatro empreendimentos: em Curitiba, comanda o restaurante Manu, com menu degustação inspirado em ingredientes brasileiros, e o Manuzita, focado em sanduíches, e que abre apenas aos sábados. A atuação em várias frentes a coloca em destaque máximo entre as mulheres chefs paranaenses.
Na capital, há, ainda, o Instituto Manu Buffara, que realiza diversas ações sociais voltadas para educação, assistência, arrecadação e fornecimento de alimentos a pessoas em situação de vulnerabilidade.
Fora do Brasil, ela está perto de inaugurar o Ella, em Nova York. Além disso, Manu viaja o mundo para cozinhar ao lado de grandes nomes da gastronomia, como palestrante, jurada de prêmios gastronômicos e chef de eventos de governos, como o da Tailândia.
Quem é o dono?
Ao mesmo tempo em que as chefs-empresárias são parte dessa evolução, é neste aspecto que o preconceito em relação às mulheres aparece.
"Às vezes, quando alguém me conhece, pergunta: você é a chef, quem é o dono? É nesses pequenos detalhes que a gente sente que parece que precisa sempre existir alguém atrás de mim, de homens, para chancelar", fala Claudia.
Há 12 anos como dona e chef do Limoeiro, Vania Krekniski também integra essa geração de mulheres que comandam o próprio negócio. Na época que estudou gastronomia, em 2007, muitas pessoas fizeram o curso por hobby, o que não era, absolutamente, o seu caso. "Eu precisava de uma profissão que fosse me sustentar, por isso, levei muito a sério", rememora Vania.
Ainda estagiária, a chef trabalhou no italiano Famiglia Fadanelli, pois já tinha familiaridade anterior com a modelagem de massas. "Quando eu ia estagiar com o Celso Freire [um dos chefs mais renomados da cidade], recebi a notícia de que ia receber duas crianças em casa. Depois de um ano e meio sem trabalhar fora, as coisas começaram a apertar e resolvi abrir um negócio. Meu marido acabou achando a casa onde hoje é o restaurante, que precisava de muitas reformas. Fiz de acordo com o que podia e deu certo", conta.
Para ela, a valorização das mulheres empresárias na gastronomia foi um processo, mas que evoluiu rapidamente na última década.
"Antigamente, a gente era vista como a pessoa que não podia carregar uma panela, fazer uma limpeza pesada na cozinha. Eu carrego, cozinho... Também temos esse senso de fazer muitas coisas ao mesmo tempo, de colocar criatividade e delicadeza nos pratos e nas criações e de ter outros projetos além do restaurante", pontua Vania.
Novos talentos e caminhos
Antes de ir à Austrália estudar na renomada Le Cordon Bleu, Júlia formou-se em arquitetura e fez uma migração de carreira planejada. "Foi difícil, mas não me arrependo. E sempre quis ficar em Curitiba porque acredito que é uma cidade com um potencial gigante para crescer e trazer novidades", afirma.
Na labuta da área de gastronomia há quatro anos, Júlia Schwabe é hoje a chef do OBST. Lugar, ao lado do chef Lênin Palhano, e desponta como uma das principais revelações da gastronomia em Curitiba. Júlia optou pela profissão em um contexto onde já estava claro para ela que a cozinha é muito mais trabalho pesado do que glamour.
Quando voltou da Austrália, trabalhou no Bobardí e, posteriormente, no Nomade, quando era comandado por Palhano; a chef o procurou por conta do interesse em trabalhar em uma cozinha que prezasse ao máximo pelos ingredientes e criatividade. Quando abriu o OBST., Palhano a convidou para assumir a cozinha do novo empreendimento.
Hoje, aos 29 anos, Júlia é a responsável por comandar o dia a dia da equipe e já tem seu nome lembrado na lista das melhores chefs paranaenses. "A cozinha é um trabalho que faz a gente amadurecer um pouco mais cedo e nós, mulheres, acabamos nos cobrando um pouco mais para entregar um trabalho excelente", acredita.