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A carne do futuro está nos laboratórios e, em breve, no fogão da sua casa
Ao construir um prato, o cozinheiro leva em consideração como a interação dos ingredientes se dará. Cada mordida precisa trazer às papilas gustativas um sabor construído. Por exemplo, em um hambúrguer, o pão pode ser crocante ou macio, com ou sem gergelim. A carne, mal passada, ao ponto ou – apesar de não ser recomendado pelos churrasqueiros – bem passada. O tipo de queijo, o molho e a salada ou picles traz um gosto, textura e contraste ao sanduíche.
Analisando microscopicamente, a combinação de aminoácidos, carboidratos e gordura (ou ausência dela) é o que faz com que cada um desses ingredientes tenha o sabor e a textura que têm. É a partir desse olhar minucioso que proteínas animais, tais como carne vermelha, peixe, foie gras, queijos e lácteos, estão sendo produzidas em laboratório.
Muitas dessas novidades ainda não chegaram às gôndolas dos supermercados – mas a previsão é de que a partir de 2021 estejam nos refrigeradores de países como Estados Unidos, França e Israel, onde está sendo realizada a maior parte das pesquisas.
As investigações ainda passam longe da cozinha: zoólogos, bioquímicos, engenheiros e demais cientistas se debruçam sobre plaquetas para fabricar alimentos de uma maneira inédita. A cadeia de produção muda: em vez do campo, laboratório. No lugar dos rebanhos, agricultura celular.
O que antes era produção exclusiva de frigoríficos, agora passa a fazer parte do mix de produtos de foodtechs – as startups que estão revolucionando o setor de alimentação. Da embalagem em diante, o roteiro segue inalterado: a bandeja sai do supermercado direto para a cozinha de casa ou do restaurante.
As foodtechs se baseiam principalmente em dois principais processos para criar seus produtos: fazer uma composição celular similar à de origem animal com moléculas vegetais; e o segundo, a reprodução do tecido muscular e gordura a partir de células-tronco. E ambas podem usar de leveduras e bactérias geneticamente modificadas, como para reproduzir as moléculas estruturantes vegetais ou os filamentos de carne.
O caminho vegetariano
A carne sintética é a usada pelas brasileiras Fazenda Futuro, que lançou seu hambúrguer em abril deste ano, e a Behind The Foods, com lançamento previsto para o segundo semestre deste ano. Os hambúrgueres da Fazenda Futuro são servidos na Lanchonete da Cidade, em São Paulo, na hamburgueria T.T. Burger, do chef Thomas Troisgros, e na rede de hamburguerias Black Beef, presente em várias cidades brasileiras, inclusive em Curitiba.
O Futuro Black Beef é servido em brioche com creme de parmesão, molho de cogumelo shiitake com queijo e feito na chapa. O sanduíche entrou no cardápio da rede em junho e é vendido por R$ 26.
Para produzir o hambúrguer, a Fazenda Futuro adaptou um modelo de máquina de frigorífico, trazido da Alemanha: no lugar da carne, entram proteína de ervilha, proteína isolada de soja e de grão-de-bico. A capacidade da fábrica da Futuro Burguer, no Rio de Janeiro, é de 150 toneladas mensais. Além de atender a restaurantes, os hambúrgueres também são vendidos em bandejas nos supermercados do Brasil (preço sugerido de R$ 16,99 para dois hambúrgueres de 115 gramas cada). Em julho, a foodtech recebeu um aporte de US$ 8,5 milhões, e a expectativa é ampliar a capacidade de produção para 550 toneladas por mês.
A composição da carne sintética segue a “receita” da bovina com percentuais de gordura e proteína similares, porém de origem vegetal. Não é um hambúrguer vegano como os caseiros, em que uma leguminosa é transformada em um bolinho, achatado e frito (ou chapeado). O preparo da Fazenda Futuro cria uma textura e suculência similar à carne moída com a adição da proteína leg-heme, de origem vegetal, cuja função é similar à da hemoglobina. A cor vermelha, no entanto, vem da beterraba.
A técnica é a mesma da startup estadunidense Impossible Foods, usado pela rede Burger King em todas as lojas daquele país no sanduíche Impossible Whopper. A rede de fast food registrou um aumento de 18,5% no movimento após a inclusão do sanduíche e o fixou no cardápio em agosto.
Na América Latina, um exemplo é a chilena The Not Company, que produz maionese sem ovos desde 2015 – em março, a empresa teve um aporte de US$ 30 milhões do criador da Amazon, Jeff Bezos. Além da emulsão, produz também sorvetes e leites vegetais com composição química similar à de origem animal com a ajuda de inteligência artificial, o robô Giuseppe. Giuseppe analisa a composição dos alimentos a serem replicados e, com um repertório de ingredientes vegetais, cria combinações que sejam mais próximas ao desejado.
Emular a forma e função de ingredientes animais é algo bastante praticado por cozinheiros (amadores ou profissionais) vegetarianos, especialmente na última década, em que hambúrgueres, queijos e leites vegetais chegaram aos poucos às gôndolas de supermercado. Segundo reportagem do New York Times, as vendas de produtos veganos em 2018 cresceram 13% para leites, 27% para sorvetes, 19% para queijos e 39% para iogurtes.
O sabor sempre foi uma debilidade da indústria: por mais elaborada que fosse a fórmula, nenhuma mordida em hambúrguer vegano confundiria alguém que consome carne regularmente. Com os resultados recentes das foodtechs, gigantes como a Tyson Foods, Marfrig e Nestlé tem estudado entrar no nicho produzindo “carne sem carne”. E a proposta não precisa de terra para pecuária, uma vez que a produção é totalmente dentro do processo industrial.
Células-tronco e agricultura celular
A carne limpa é o segundo tipo, em que se usam células indiferenciadas em um ambiente propício para que se reproduzam e formem o tecido ou órgão desejado. À essa “sopa” são acrescidos nutrientes que o animal ingeriria e a reprodução das células poderia seguir indefinidamente. A técnica continua precisando de um animal para dar início ao processo, porém em número muito menor do que a pecuária abateria para entregar o mesmo volume.
A francesa Suprême extrai células de ovos frescos de pato e ganso para produzir seu foie gras com esta técnica. Por sua vez, a estadunidense Finless Foods pesquisa como desenvolver carnes de peixes em extinção em laboratório, como o atum blue fin. Além de evitar o abate de animais e a pesca predatória, as empresas defendem que seria o método de conseguir a carne mais fresca e sem causar dor, pois o tecido produzido não tem sistema nervoso.
Nos Estados Unidos, a Memphis Meats estuda produzir tiras de frango e de pato e a New Culture, da Nova Zelândia, reproduz em laboratório proteínas fundamentais (caseína e whey) para compor leites e queijo sem precisar de ordenha.
Esta é a promessa de revolução da proteína in vitro: reproduzir em laboratório uma muçarela ou carne moída bovinas, sem a exploração animal contínua, usando de agricultura celular para reproduzir sob demanda.
Por ora, a carne bovina tem aspecto de carne moída, pois o cultivo é feito em uma estrutura plana, onde o filamento de proteína se aglutina. Para produzir uma peça como a que vemos no açougue, é necessário construir “andaimes” para que os filamentos de proteína se entrelacem – há startups que desenvolvem essas estruturas, chamadas de scaffold.
A israelense Aleph Farms foi a pioneira em desenvolver um bife em laboratório usando o método e no Brasil, a Biomimetic Solutions, de Minas Gerais, desenvolve estas estruturas a partir de polímeros vegetais. Segundo informações da Aleph Farms, em três semanas as células estruturais, de músculo, de sangue e de gordura formariam um “bife”. A empresa faz o comparativo com a pecuária, em que o processo de crescimento, engorda e abate do gado levaria dois anos.
Destino incerto para a proteína in vitro
Tanto a carne sintética quanto a limpa formam uma nova categoria de alimentos e o segundo tipo (in vitro), ainda não foi posta, de fato, no mercado. “A desconfiança do consumidor em relação à carne vai existir por um tempo”, analisa Pedro Druri, professor de gastronomia da Anhembi-Morumbi, que leciona Gastronomia Contemporânea. “Não temos resultados conclusivos sobre os efeitos no organismo de consumir algo produzido por micro-organismos geneticamente modificados, e ainda há a discussão de como será a regulamentação por órgãos responsáveis”, completa, em referência à carne produzida por meio de células indiferenciadas.
Para Druri, é possível que o caminho das proteínas in vitro seja o mesmo que a cozinha molecular: revolucionário nos resultados obtidos, mas restrito a experimentações de grandes chefs, uma vez que o prazo para que a maior parte da população tenha acesso não é consenso. Enquanto a maior parte dos produtos está em desenvolvimento, no Brasil, a realidade mais próxima é a de carne sintética, que começaram a ser vendidas esse ano no Brasil.
Em relação à agricultura celular, também são poucas as certezas. Certamente a carne de laboratório poderia substituir parte da pecuária, responsável pela emissão de gases do efeito estufa, compactação do solo e poluição de rios e lençol freático – micróbios, afinal, são menores que vacas.
Mas os avanços das foodtechs podem esbarrar no lobby da pecuária, e o desenvolvimento destes produtos em laboratório suscitam mais questões (sanitárias, logísticas, de escala e até morais, para listar algumas) que a quantidade de células necessárias para formar um hambúrguer.
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