Bom Gourmet
A ascensão meteórica de Dominique Crenn, a melhor chef do mundo
Cinco anos atrás, Dominique Crenn era só mais uma chef que ralava em seu restaurante pequeno e ambicioso, na área da Baía de San Francisco. Ela cozinhava desde o início dos anos 90, quando chegou à cidade saída da França, sua terra natal, mas era desconhecida da maioria dos gourmets norte-americanos. Nunca ganhou um prêmio James Beard, não foi jurada do programa “Top Chef”, nem emplacou nenhuma das atividades básicas do estrelato culinário.
Porém, em 2013, o Atelier Crenn, casa modernista e elegante que mantém em Pacific Heights, ganhou duas estrelas do Guia Michelin, fazendo de Dominique a chef mulher mais bem conceituada nos EUA, passando a atrair a tribo de turistas de gastronomia, que faz questão de conferir os premiados. No ano passado, ela foi considerada a “Melhor Chef Mulher do Mundo” pelo World’s 50 Best, grupo londrino que publica uma lista anual influente dos melhores restaurantes do mundo.
Desde então já fez campanhas publicitárias para as geladeiras da LG e os utensílios da Georg Jensen, foi modelo de capa da revista Gastronomique En Vogue e inspiração de um episódio de “Chef’s Table”, da Netflix. Foi homenageada pelo governo francês por suas contribuições à gastronomia e cultura, deu uma palestra TED Talk sobre “definição de sucesso”, falou na Universidade de Harvard e lidera um movimento, com vários colegas, para recuperar a agricultura do Haiti.
Seu salto para a fama e o consequente prestígio internacional surpreenderam muitos norte-americanos, mais familiarizados com nomes como Barbara Lynch e April Bloomfield. E levantaram questões, algumas novas, outras bem batidas, sobre o como e o porquê de alguns chefs, e não outros, virarem celebridade.
A própria Dominique, ainda um tanto surpresa com a ascensão meteórica, é uma das que mais tem pensado no assunto, principalmente no que significa ser uma mulher de destaque no que ainda é considerado um campo dominado pelos homens.
“Espero que daqui a uns dois anos esse prêmio não exista mais”, comenta, bebericando o café preto e fraco que pediu na bicicletaria hipster/expresso bar perto do restaurante. Confessa ter pensado em rejeitar o título que muitas colegas, e ela mesma, consideram paternalista. “Mas aí caí em mim e vi que, em vez de questionar, poderia fazer algo com ele.”
E fica bem claro que Dominique Crenn é boa de briga, da sola do Adidas retrô-chic às pontas do cabelo espetado. É solícita, franca, autoritária e mole de coração, às vezes tudo junto, em uma única sentença. Ao contrário de muitos colegas que preferem se concentrar no trabalho e focar na cozinha, ela não tem medo de se manifestar, seja para falar de imigração, direitos, gratidão ou outros assuntos pouco relacionados com comida.
“Não se pode subestimar a força de Dominique”, diz Melissa Perello, chef do Octavia e do Frances, em San Francisco, e amiga antiga.
Como chef, é a artista que desafia e cria e a cozinheira que conforta e nutre. (Seu outro restaurante, o Petit Crenn, é uma homenagem à comida caseira francesa e às visitas que fazia à Bretanha, quando era criança.)
O jantar no diminuto Atelier Crenn, inaugurado em 2011, não começa com o cardápio, mas sim com um poema em uma folha de papel: “À beira do lago invernal, / Venha comigo ver a luz dourada / E a explosão de sensações oceânicas, pérolas negras salgadas / A energia e a extravagância do umami azul…”.
A poesia, escrita pela própria Dominique, continua e muda conforme a estação, assim como o cardápio. Cada estrofe corresponde a um prato: são mais de trinta opções diferentes, cada uma ao mesmo tempo deliciosa, elaborada e desconcertante.
No prato, “a energia e a extravagância do umami azul” se traduz em uma delícia preparada com frutos do mar: haliotes grelhados com fígado, alho assado, “geleia” de ovo, creme perfumado de ostras e um molho cítrico gelatinoso.
O famoso chef francês Guy Savoy se confessou “imediatamente seduzido” pela culinária da colega e compatriota. “Seu trabalho respeita e diz muito sobre os produtos que usa; quando combinados com sua maravilhosa sensibilidade, geram um resultado profundamente tocante.”
A verdade, porém, é que uma comida que seja “profundamente tocante” nem sempre é algo com que o norte-americano se sente à vontade; por isso, alguns críticos a consideram enigmática demais e pretensiosa, tanto no prato quanto na apresentação.
“Atelier Crenn: Metamorphosis of Taste”, seu livro de receitas de 2015, inclui as instruções para o preparo de “Birth”, um ninho feito com cabelo de milho, desidratado e frito, recheado de ovinhos de “leite” de milho, gordura de pato e gemas, guarnecido com raminhos de chocolate amargo.
Ela pode ser intensamente cerebral na elaboração dos pratos, mas, pessoalmente, é apaixonante. “Daria até para pensar que é meio sem graça, mas, na verdade, é o oposto. Dominique é uma chef muito séria com uma personalidade divertida”, afirma Nancy Silverton, uma das fundadoras da LaBrea Bakery e do Mozza de Los Angeles.
Dominique, 51 anos, cresceu na periferia de Paris, em Versalhes. O pai, Allain Crenn, era político e pintor e foi graças a ele que desenvolveu o olho para as artes visuais e o mundo natural, sempre presentes em seu trabalho.
Aprendeu o básico da cozinha com a mãe, Louise Crenn, e começou a frequentar restaurantes finos desde muito cedo. Entretanto, não sonhava em se tornar chef e nunca fez nenhum curso de gastronomia. Mudou-se para os EUA depois de se formar em Paris e nunca mais foi embora. “A França é minha terra, mas San Francisco é a minha casa”, ela costuma dizer.
No Clube do Bolinha
É a única mulher nomeada para o conselho internacional do prestigiado Centro Culinário Basco, um instituto de pesquisa e inovação na Espanha patrocinado pela AB InBev, Siemens e outras multinacionais. Entre os outros membros estão Ferran Adrià, Dan Barber, Alex Atala e Massimo Bottura.
Dominique agora tem que brigar publicamente com o papel cada vez mais controverso de chef mulher de destaque, rótulo que tentou evitar durante toda a carreira. Na manhã seguinte ao recebimento da honraria, ela foi ao programa “Today” para defender (e justificar) o título, enquanto nas redes sociais o debate pegava fogo, discutindo se a homenagem era um reconhecimento gratificante dos colegas ou uma expressão gritante de sexismo que continua a tomar conta do setor.
Muitos chefs e jornalistas alegam que a própria existência do prêmio já é uma questão simbólica, principalmente quando dedicada a uma chef como Dominique, cujo restaurante nunca apareceu na lista da World’s 50 Best list. No site Mic, a crítica Khushbu Shah escreveu: “A homenagem reconhece que você é a melhor chef mulher do mundo, mas que ainda é superada por 50 chefs homens.”
Hoje, seu estilo pode agir em seu favor; afinal, Dominique prepara o tipo de comida que atualmente ganha destaque da imprensa especializada e dos gourmets turistas. Isso significa usar a tecnologia para transformar comidas familiares em opções exóticas, lançar mão de ingredientes luxuosos como foie gras, haliote e caranguejo-real, fazer experimentos com elementos como plâncton e bagas de espinheiro amarelo e criar uma apresentação altamente “instagramável”.
“Ela cozinha do jeito que os homens estão cozinhando”, sentencia Michael Bauer, crítico gastronômico do San Francisco Chronicle. “O resultado é parecido com o que se vê no Benu, no Quince ou no Le Bernardin”, todos com três estrelas do Michelin, todos comandados por homens.
Claro está que a “descoberta” de Dominique não tem só a ver com a comida. “Sim, Dominique dá mais valor às técnicas e aos equipamentos que qualquer outra chef mulher que conheço, mas é seu carisma e sua confiança, e não sua habilidade na cozinha, que lhe abriram a porta do clube do Bolinha”, conclui Nancy Silverton.