Bom Gourmet
Renascer está de volta: marca catarinense é pioneira na busca por cacau na região da novela
Estreia nesta segunda-feira (22) na Rede Globo a nova versão da novela Renascer, exibida originalmente de março a novembro de 1993. A trama escrita por Benedito Ruy Barbosa acontece no sul da Bahia, e tem o cultivo de cacau, cultura tradicional da região, como elemento central da narrativa. A versão de 2024 conta com a assinatura de Bruno Luperi, neto do autor. A direção é de Gustavo Fernandez, que comandou o remake de Pantanal, em 2022.
Em Renascer, José Inocêncio é um fazendeiro poderoso de cacau - papel que foi de Antônio Fagundes na primeira versão, assumido por Marcos Palmeira na refilmagem. A história acompanha sua trajetória autoritária, os conflitos e as reconciliações com os filhos, e o contexto social, que envolve as práticas religiosas e culturais afro-brasileiras, mais o momento econômico vivido pelo país, em especial o nordeste.
Em sua nova versão, Renascer trata das novas práticas de manejo e do cultivo do cacau, o cuidado com a terra e o meio ambiente. Inclui ainda todo o trabalho feito para a criação de produtos mais nobres tendo o cacau como origem.
Essa perspectiva está alinhada ao trabalho realizado por alguns produtores de chocolate no país. Quando surgiu no mercado em busca de produzir o primeiro chocolate do Brasil bean-to-bar (da semente à barra, ou seja, sem segmentação de processos ou aditivos), a Nugali, de Pomerode (SC), entendeu que precisava de cacau de alta qualidade. Mas a tradição brasileira era do cacau commodity, de qualidade mais baixa. A marca encontrou na Bahia, de forma pioneira, um produtor que iniciava a produção de cacau com qualidade mais elaborada, e então, uniu esforços para, em dois anos, chegar ao resultado desejado. "Nós, com torra, processamento, formulações, conchagem; ele, com fermentação, variedades de cacau e outros parâmetros", explica Ivan Blumenschein, sócio da Nugali, sobre o trabalho a quatro mãos feito com o produtor João Tavares.
Em 2006, a Nugali lançou o Serra do Conduru, primeiro chocolate bean-to-bar feito no Brasil, primeiro de origem única e também o primeiro a conter 80% de cacau. O produto leva o nome da serra, próxima a Ilhéus, na Bahia, cidade onde se passa boa parte da história de Renascer. E o chocolate foi o primeiro brasileiro premiado internacionalmente, em 2016. Hoje, a fábrica soma mais de 36 prêmios, e 21 produtos já contam com reconhecimento internacional.
Foi a própria fábrica quem construiu as máquinas para quebrar, torrar amêndoas de cacau e produzir a massa, já que à época não encontrou equipamento no mercado para o processo. Junto com sua esposa e sócia, Maitê Lang, Ivan estabeleceu relação com outras cooperativas, em especial no Pará, para, segundo ele, "construir com os fornecedores uma relação duradoura e de confiança, para que seja sustentável no longo prazo, tanto para a Nugali quanto para os produtores".
Uma outra realidade
Na década de 90, período retratado pela novela, uma crise atingiu a microrregião cacaueira da Bahia. Foi a última das três principais enfrentadas pela localidade. Segundo estudo “A região cacaueira do sul do estado da Bahia (Brasil): crise e transformação”, elaborado pelos pesquisadores Paulo César Bahia de Aguiar e Mônica de Moura Pires, de 2019, a região sofreu naquele período devido às estiagens, à infestação da praga crinipellis perniciosa, ou vassoura-de-bruxa, como retratado em Renascer), que afetou assustadoramente as plantações, à falta de modernização da produção, descapitalização e endividamento dos produtores de cacau e falência de algumas empresas do setor. A instabilidade na economia do país, a superprodução de cacau em outros países, a queda dos preços do produto e transformações pelo processo de globalização também afetaram o trabalho dos produtores baianos.
Época em que o teor de cacau em um chocolate não importava tanto, e quando provavelmente só um grupo bastante pequeno de consumidores prestava atenção nas letras miúdas dos rótulos para saber a procedência do cacau e quais os ingredientes compunham o produto. Hoje, com uma atenção cada vez maior à saudabilidade dos alimentos e à sustentabilidade dos processos, marcas como a Nugali fazem questão de deixar claras suas intenções quanto a manter em funcionamento e em expansão uma cadeia em que todas as pontas são beneficiadas: produtores de cacau, fabricantes dos chocolates e consumidores.
A retomada da cultura do cacau no sul da Bahia se deu com as cooperativas, que hoje promovem técnicas agrícolas que respeitam a biodiversidade local, como o sistema de cabruca, em que as árvores de cacau são plantadas sob a sombra da Mata Atlântica. Isso faz com que se estabeleça um ambiente que beneficia a flora e fauna locais. A prática protege não apenas a floresta, mas produz um cacau de qualidade superior, ideal para os produtos 'bean-to-bar', como os fabricados pella Nugali, e por tantas marcas menores mas que oferecem produtos de butique.
"Nos últimos anos, a Nugali vem procurando dar mais visibilidade a iniciativas que adotamos, muitas desde a fundação, como comércio justo, energia limpa, lixo zero, logística reversa, carbono neutro, redução de plásticos, etc.", explica Ivan. "Cada vez mais consumidores estão preocupados não somente com a qualidade dos produtos que adquirem ou consomem, mas também com a forma com que foram feitos. Assim como como tivemos um papel de vanguarda no bean-to-bar, talvez possamos inspirar outras marcas, não somente de chocolates, a adotarem práticas parecidas. Afinal, a preocupação com o mundo e com as pessoas é uma obrigação comum e conjunta de todos nós", detalha. Esses conceitos são apresentados no Tour Nugali, programa de visitação à fábrica em Pomerode inaugurada em 2021. Mais de 250 mil pessoas já fizeram a visita.
Cacau bom x cacau ruim e uma cadeia sustentável
O empresário lembra que há uma diferença considerável entre o cacau comum e o fino. Para obter um produto de qualidade inquestionável, há um capricho necessário na escolha dos frutos, deixando de fora cacaus doentes ou passados. É preciso observar ainda um processo de vários dias na fermentação, em que se desenvolvem os sabores das amêndoas de cacau. "A maior parte do cacau produzido no Brasil não passa por essa seleção, nem mesmo é fermentado", informa. Outra diferença está na secagem, que deve ser feita somente ao sol. No Brasil, boa parte da produção é seca com auxílio de secadores à lenha que, acrescenta Ivan, além de ser prejudicial ao meio ambiente, contamina o sabor do cacau com fumaça.
Sem contar a utilização de produtos prejudiciais à saúde em boa parte dos chocolates comercializados, como o uso de gordura hidrogenada no lugar de manteiga de cacau e vanilina em vez de baulinha de verdade, mais os substitutos para o leite integral. "Para mascarar ingredientes ruins, o cacau precisa receber uma torra muito intensa, e acaba ficando amargo, o que leva à necessidade de acrescentar muito açúcar e aromatizantes", esclarece.
Em Curitiba, pequenas chocolaterias, como Utopia Tropical, BlendCacao, Caos Chocolate Autoral de Origem, Cuore di Cacao e outras, vão no mesmo caminho. Optam por adquirir a matéria prima diretamente das cooperativas produtoras da Bahia e do Pará, e dão um toque artesanal aos produtos, com maiores teores de cacau e extraindo produtos como gordura hidrogenada e aromatizantes das receitas. O que já compõe um cenário positivo para os amantes conscientes do chocolate, considerando ainda a existência de tantas outras marcas espalhadas pelo país interessadas em construir e fortalecer uma cadeia produtiva saudável e sustentável.
"Mesmo que estivéssemos olhando para a Nugali de forma egoísta, precisamos de fornecedores de cacau que continuem trabalhando com o nível de qualidade que os nossos produtos exigem", pondera Ivan. "Então, não é do nosso interesse nenhum tipo de relação predatória, pois se a parceria for ruim para o produtor, ela tem vida curta", analisa. "Da mesma forma que não procuramos apertar o produtor quando a cotação está baixa, contamos com a visão de longo prazo deles para que não façam o oposto em anos de produção menor. Acreditamos que esse é o segredo de relações duradouras", finaliza.