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O processo de fermentação, além de ser o responsável pelo surgimento de alimentos e bebidas como ao queijo e a cerveja, também é usado para agregar sabor, aroma, textura e acidez em diversos preparos

Receitas e Pratos

Fermentação: tudo sobre a técnica que acrescenta sabor e textura a preparos do dia a dia

Isadora Rupp, especial para a Gazeta do Povo
05/06/2020 11:00
Toda culinária é transformação: a fermentação, no entanto, sempre foi envolta por um certo mistério: como é possível que a terra transforme a uva em vinho, a cevada em cerveja, a acelga em iguarias como o kimchi? E que, um único ingrediente, o leite, seja a base para inúmeros tipos de queijos? Pode parecer inusitado, mas os sabores da fermentação são conseguidos graças à ação de micro-organismos e bactérias presentes no ambiente.
O processo não é tão simples quanto pode parecer. Fermentar requer um certo tempo, paciência e risco – pergunte a qualquer adorador de cerveja que se arriscou a fazer a bebida de forma caseira quantas receitas perdeu antes de acertar uma que ficasse minimamente bebível. Mesma coisa para padeiros amadores. “É um movimento de olhar para trás e aprender a cozinhar”, acredita o chef André Pionteke, que usa a fermentação em diversos alimentos usados em seu restaurante, o Kitsune, que mistura técnicas orientais com ingredientes locais na formatação das receitas. Pionteke teve contato com fermentação e conservas desde moleque. “Meu avô e meu pai faziam conserva de cebola, pepino azedo”, relembra. Foi num estágio em 2014 no restaurante Épice (do chef Alberto Landgraf, hoje Oteque), em São Paulo) que o chef se aprofundou na técnica.
A partir de então, Pionteke pesquisou e incorporou a fermentação à sua cozinha, sobretudo pela construção de camadas de sabor. “Eu sempre senti falta da acidez nos pratos, não só a do limão, vinagre ou frutas vermelhas. Os compostos fermentados trazem essa acidez, além da crocância do vegetal fermentado, que fica crocante mas não tão resistente à mastigada” diz o chef. Ele exemplifica com uma das receitas do Kitsune: o Bao de Barriga (sanduíche com pão chinês e barriga de porco laqueada), que ganha acidez com o kimchi (preparação fermentada de vegetais, cuja origem é coreana), e “quebra" o excesso de gordura da carne.
Kimchi: o preparo coreano à base de acelga fermentada é um dos preferidos na cozinha do chef André Pionteke, do Kitsune, por sua versatilidade e sabor
Kimchi: o preparo coreano à base de acelga fermentada é um dos preferidos na cozinha do chef André Pionteke, do Kitsune, por sua versatilidade e sabor
“A acelga crua fermentada não fica tão dura quanto a fresca, se torna maleável para o sanduíche e tem a potência do sabor”, define Pionteke. Na sua receita de kimchi, o chef optou por uma composição básica com a acelga, alho, cebola, cebolinha e gengibre. “O resultado positivo vem de um legume de boa procedência, respeitando a sazonalidade”, orienta.
O kimchi, aliás, é um de seus preparos preferidos pela versatilidade, e está presente em boa parte dos pratos do Kitsune. Pionteke já o usou até em uma pizza, quando fez aulas de pães e massas de fermentação natural com Rene Seifert, do projeto O Pão da Casa, na Colônia Witmarsum (município de Palmeira). Além da fermentação asiática, o chef  tem estudado nos últimos anos os fermentados indígenas, como a mandioca puba e o tucupi.
Vegetais em conserva podem ser fermentados ou não: nas versões com vinagre, o ambiente ácido destrói as bactérias
Vegetais em conserva podem ser fermentados ou não: nas versões com vinagre, o ambiente ácido destrói as bactérias
Queijos e vinhos
Se a fermentação de vegetais agrega sabores únicos, a técnica por si só é a responsável pelo surgimento do queijo e de bebidas alcoólicas – vinhos, cervejas, espumantes e outras bebidas como o kombucha. Esse último nada mais é do que chá preto ou verde fermentado por uma cultura de bactérias e leveduras, chamada scoby, que resulta em uma bebida gasosa, adocicada e ácida, com um teor alcóolico ínfimo.
“Sem fermentação não existe nenhuma dessas bebidas. É ela quem transforma o mosto primário em uma bebida alcoólica”, explica o fundador da Morada Cia Etílica, André Junqueira. Primeira cervejaria cigana do Brasil (Junqueira iniciou a empresa junto com a sócia e esposa, Fernanda Lazzari), a Morada começou com cervejas, mas logo expandiu: sidra, espumantes e cervejas que usam leveduras selvagens fazem parte da linha de produtos, que são produzidas em Curitiba, Londrina, Colombo e na Serra Gaúcha.
A fermentação é a responsável pela transformação do mosto primário em bebida alcoólica, como cerveja, vinho e sidra
A fermentação é a responsável pela transformação do mosto primário em bebida alcoólica, como cerveja, vinho e sidra
A mesma lógica segue o queijo: as bactérias fermentam o ingrediente principal (leite) para que se forme o alimento. O sabor e o tipo vão depender de variáveis como as bactérias utilizadas, a região de produção e a alimentação do gado, esclarece a proprietária da Bon Vivant Queijos, Flavia Rogoski. “Por isso que o leite, um único ingrediente, faz queijos tão diferentes. É no processo de maturação que as bactérias vão consumindo lactose [açúcar do leite], o que muda a estrutura da célula e traz sabores diferentes”. Flavia, que vende mais de 600 tipos de queijo de diversas regiões do Brasil e do mundo, esclarece que queijos com fungos como o gorgonzola, brie e roquefort são naturais das regiões produtoras, que “contaminam” o queijo.
Umidade, intensidade do sabor e textura são aspectos variáveis em cada queijo, e a aceitação vai muito do paladar de cada um: um produto da Serra da Canastra, acredita Flavia, combina mais com o café da manhã e acompanha bem um doce e geleias. A combinação dos tipos de queijos com bebidas não é das tarefas mais simples, acredita, mas ela dá uma dica que costuma ser unânime: difícil quem não goste do gouda (de origem holandesa). “É bem amanteigado e leve, tem bastante aceitação.”
A fermentação dá origem ao queijo, e a maturação é a responsável pela textura e sabor. Amanteigado e leve, o gouda costuma agradar diversos paladares
A fermentação dá origem ao queijo, e a maturação é a responsável pela textura e sabor. Amanteigado e leve, o gouda costuma agradar diversos paladares
Nos queijos veganos (ou seja, feitos sem produtos de origem animal), a lógica é a mesma, mas é a fermentação das castanhas (que, cruas, ficam de molho em água junto com vinagre de maçã ou kefir) que formam o alimento junto com alguma “isca” (como um pouco de melado), pontua o chef especialista em fermentados, comida crua e plant based, Luiz Reikdal. Formado pelo Projeto Terrapia, no Rio de Janeiro, o chef dá aulas sobre comida crua e viva e fornece os seus queijos para restaurantes como o Viva La Vegan, em Curitiba. “Em termos de sabor todo mundo se surpreende”, conta.
Assim como nos queijos feitos com leite, a maturação dos veganos é o que dá as características. “Você pode fazer mais cremoso, mais apurado. Tudo depende do processo de curar, da quantidade de líquido. O segredo do queijo é afinar, como se ajusta os teclados de um piano. Ir descobrindo o sabor e a textura”, define. Reikdal é um entusiasta dos fermentados não apenas pelo sabor, mas pelos benefícios à saúde. “Os alimentos vivos ajudam muito na nossa flora intestinal e, por consequência, fortalecem a imunidade.”
Um bom chocolate
Ao contrário de alimentos que são formados pelo processo bioquímico da fermentação, o cacau, principal ingrediente do chocolate, não precisa fermentar para que o doce seja produzido – as grandes indústrias usam geralmente o cacau que seguiu direto para a secagem e torra. Já produtos feitos com o chamado cacau fino, ou os “bean to bar" (da semente para a barra), trazem aromas e sabores que se assemelham com o vinho, por conta da fermentação da semente do fruto: podem ter notas de castanhas, florais, especiarias, entre outros.
O processo dura, em média, sete dias: assim que o cacau é colhido, as sementes com a polpa branca são retiradas do fruto e levadas aos cochos de fermentação (que normalmente são de madeira), e cobertos com folha de bananeira. Depois de alguns dias ocorre a chamada “vira" do cacau, quando a mistura é mexida para acrescentar oxigênio.
Chocolate pode ser feito com cacau não fermentado, mas o resultado não é tão rico quanto o produzido com a semente que passa pelo processo – o alimento traz notas de sabor e aroma tão perceptíveis quanto o vinho
Chocolate pode ser feito com cacau não fermentado, mas o resultado não é tão rico quanto o produzido com a semente que passa pelo processo – o alimento traz notas de sabor e aroma tão perceptíveis quanto o vinho
“Durante essa semana a polpa branca se degradou. Esse cacau, que está com um aroma ácido, será colocado para secar. E aí  recebemos a semente de cacau”, detalha a sócia da Cuore di Cacao, Bibiana Schneider. A chocolateria artesanal, que trabalha apenas com produtores do Sul da Bahia, tem uma relação bastante próxima com os fornecedores. “Visitamos as fazendas, conhecemos o manejo do cacau e as condições de trabalho. Também recebo um lote com toda a análise de acidez do cacau, e temos o histórico da colheita e fermentação”, conta. A fermentação junto com características próprias do sabor do fruto dão as notas características. “É um universo, uma riqueza. Você pode comprar 30 barras de chocolate 70%, que eles serão diferentes”,salienta Bibiana.
Quanto maior o porcentual de cacau no chocolate, mais é possível sentir essas nuances, de acordo com Bibiana. No entanto, ela frisa que as versões ao leite, ou até mesmo o chocolate branco (feito somente com manteiga de cacau) têm o seu valor: nesse caso, quem come o doce perceberá a diferença principalmente na qualidade e na forma como se desmancha na boca.
Paciência e pão 
Nos últimos anos, o número de padeiros e estabelecimentos que começaram a disseminar a fermentação natural cresceu exponencialmente no Brasil. Preparar a massa com o levain (fermento natural) e deixá-la descansar por um período longo (12 horas ou mais) são técnicas que, assim como no caso do vinho e do chocolate, fazem o pão ganhar um sabor único, menos neutro. “A fermentação longa te dá um pão mais saboroso e aromático. A farinha usada, a maneira como o pão foi assado, se tostou um pouco mais. Tudo isso também vai dar a diferença final no produto” , esclarece o padeiro e co-fundador da Fábrika Pães, André Santi. A casca desse tipo de pão costuma ser um pouco mais grossa, o que nem sempre agrada ao paladar de todos, e pode ser amenizada com a adição de algum tipo de gordura (manteiga, banha ou gema de ovo) na massa.
Pães de fermentação natural e lenta têm um sabor mais intenso e aromático, além de serem melhor digeridos pelo organismo
Pães de fermentação natural e lenta têm um sabor mais intenso e aromático, além de serem melhor digeridos pelo organismo
Outra diferença é o uso do levain, um composto de bactérias e micro-organismos vivos “domesticados" por padeiros – profissionais ou amadores - que se reproduzem em um ambiente viável e úmido. A fermentação industrial reproduz o levain em uma versão seca e desidratada, tornando o processo de fazer um pão mais fácil e rápido. A digestão, porém, é mais lenta. “A fermentação longa traz uma digestibilidade melhor. Na fermentação acelerada não dá tempo do fermento digerir a cadeia gluteica. Se o pão fermenta por 12 horas ou mais, seja com fermento natural ou não, essa longa jornada pré-digere o glúten. O que causa bem menos desconforto para quem tem uma certa intolerância ao glúten” explica Santi.
A Fábrika, que também serve pizzas com massa de fermentação natural e longa, não é purista em relação à fermentação natural (ou seja, apenas com o levain), e usam a técnica mista (que leva um pouco do fermento biológico industrializado junto ao levain) para alguns de seus produtos (como a focaccia e os pães caseiros). “Isso dá o resultado que a gente busca, e não deixamos de fazer a fermentação longa também. Existe um mito em cima da fermentação natural hoje, e somos mais céticos. Temos pães que fermentam por 48 horas, mas é um público específico que gosta. Nossa ideia é vender pães que sejam acessíveis para o público em geral”, frisa o padeiro. 
Biblioteca
Para quem quer se aprofundar na técnica de fermentação, alguns títulos referência no tema: 
A Arte da Fermentação
Autor: Sandor Ellix Katz
Capa do livro "A Arte da Fermentação"
Capa do livro "A Arte da Fermentação"
A obras é uma das mais renomadas sobre o assunto; o autor aprofunda as questões técnicas e a relaciona o ato de fermentar como uma maneira de se engajar no mundo, além de ensinar receitas.
Preço médio: R$ 140.
Pão Nosso
Autor: Luiz Américo Camargo
Capa do livro "Pão Nosso"
Capa do livro "Pão Nosso"
O livro traz os segredos no preparo do levain (o fermento natural) em casa, além de dezenas de receitas caseiras testadas por ele, como pães integrais, de nozes, com azeitonas e até panetone. Há ainda preparos cujo pão é o protagonista, como rabanada salgada e a salada panzanella.
Preço médio: R$ 70.
Fermentação Selvagem: Sabor, nutrição  e prática dos alimentos de cultura viva
Autor: Sandor Ellix Katz
Capa do livro "Fermentação selvagem"
Capa do livro "Fermentação selvagem"
O autor apresenta uma gama de alimentos fermentados, seus principais benefícios e novas técnicas que aprendeu em suas viagens pelo mundo. Há receitas elaboradas, como a de cerveja africana e panquecas de trigo-sarraceno. Preço médio: 89.
Cozinhar: uma história natural da transformação
Autor: Michael Pollan
Capa do livro "Cozinhar"
Capa do livro "Cozinhar"
A partir dos quatro elementos da natureza (fogo, água, ar e terra), Pollan se aprofunda na transformação dos alimentos e narra uma trajetória pessoal no processo de preparação e aprendizado sobre cozinhar. Preço médio: R$ 49,90.
Conserva x Fermentação 
É possível fazer conserva com um grande número de vegetais, mas elas não são necessariamente fermentadas, fala o chef André Pionteke. “Elas são parecidas, mas diferentes. A fermentação é um ambiente seletivo e, nesse ambiente com sal ou açúcar, as bactérias desenvolvem os sabores pelo alimento que está fermentando. Na conserva, o vinagre destrói esse ambiente de bactérias e constrói um de ácido lático”. Segundo ele, é possível fazer conserva de quase todos os vegetais, porém, ele indica começar pelas mais fáceis (como a de cebola e beterraba). “Entenda aos poucos. Busque alguma informação, higienize bem o equipamento e vá na fé. Procure fazer algo que você goste de comer”.
Kombucha: a bebida gaseificada feita da fermentação do chá com uma cultura de leveduras e bactérias virou febre entre os apreciadores da gastronomia saudável
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