Produtos & Ingredientes
Com carne macia e saborosa, porco paranaense é o novo xodó dos chefs
Nada de pequenos confinamentos para engorda rápida. Os porcos da raça Moura são tradicionalmente criados de maneira rústica, soltos em pastagens e florestas nativas. Comem o que encontram pelo caminho, de pinhão no inverno a butiá no verão. É assim que esses suínos se desenvolveram desde que foram trazidos ao Brasil por jesuítas portugueses e espanhóis durante o período das missões religiosas no período colonial.
E é assim que vivem até hoje em criações como a de Felipe Nicolau Soifer, em Piraquara, na Região Metropolitana de Curitiba, que trabalha com a produção do Moura há três anos. A raça que se desenvolveu na Região Sul do país, e foi resgatada no Paraná, é uma das maiores em tamanho no país – reprodutores adultos podem atingir mais de 300 quilos. Mas, como os suínos são criados de maneira extensiva, eles demoram em média um ano para atingir o peso mínimo para o abate, de 100 quilos. A morosidade em relação à criação suína industrial padrão compensa em termos de sabor e qualidade.
“O fato de o animal andar mais, estimula a produção de glóbulo vermelho. Então essa carne é muito mais avermelhada. Parece até carne de gado, não é aquela carne do porco que foi criado na granja, que é mais pálida porque não se movimentou”, explica Soifer.
De acordo com Bernardo Fadel, que é produtor de Moura em Bituruna, no interior paranaense, outro fator importante que garante a diferenciação da cor é o pH da carne — quanto menor o índice de acidez, melhor a qualidade. “Quando o animal está estressado, ele libera substâncias que aumentam a acidez na carne. O abate deve ser humanitário. O bem-estar animal, a maneira de criação e abate, tudo isso influencia”, expõe Fadel.
Ao contrário da carne suína encontrada nas prateleiras do supermercado, a carne do Moura apresenta alto nível de marmoreio, que é a gordura entremeada nas fibras musculares. Isso torna o alimento mais suculento, macio e saboroso. Por ser descendente das raças oriundas da Península Ibérica, a carne do Moura se assemelha aos porcos pretos ibéricos, utilizados para a produção do jamón pata negra, o mais apreciado presunto cru espanhol.
As características marcantes da raça atraem cada vez mais chefs e açougues premium em busca de diferencial. É o caso do bistrô e açougue Bull Prime, em Curitiba, que serve preparações com o Moura e cortes da carne in natura diariamente. A procedência é garantida: vem diretamente da produção suína cuidadosa de Soifer. “O processo de produção interfere muito. São animais criados soltos, alimentados por frutas. Esse manejo resulta em maciez e sabor característico, totalmente diferente do padrão da indústria”, conta Marcos Canan, empresário e proprietário do espaço gastronômico. O preço da carne do Moura no local varia de R$ 25 a 50 o quilo.
Resgate da raça
Essa carne tão rica em sabores esteve prestes a sumir do mapa em definitivo até poucos anos atrás. A raça que se desenvolveu e se adaptou ao Sul do Brasil com o passar dos séculos foi sendo pouco a pouco cruzada e substituída por raças de porcos dos Estados Unidos e europeus selecionados para a produção industrial em larga escala. Marson Bruck Warpechowski, professor do Departamento de Zootecnia da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e coordenador do projeto de conservação e multiplicação da raça de suínos Moura da instituição, conta que o processo de industrialização da suinocultura no Brasil teve início na década de 1960, mas foi na de 1980 que atingiu seu ápice.
“Pararam de usar as nossas raças locais. O objetivo era produzir carne com o menor custo possível. O sistema inteiro foi mudando para que os animais crescessem mais rápido, com menor quantidade de gordura e maior quantidade de carne. A produção aumentou em escala, mas não conseguiu manter a qualidade. Aquela carne que existia desses animais originários, do jeito de criar antigo, é totalmente diferente”, descreve Warpechowski.
O projeto de resgate do porco Moura começou no Paraná em 1985, quando o professor da UFPR Narcizo Marques da Silva, hoje aposentado, percorreu o Sul do Brasil procurando remanescentes do Moura. Ele cruzou animais com as características dessa raça nativa, que registrou oficialmente em 1990. Interrompido em 2002, o projeto foi retomado em 2014 por Warpechowski. Graças a esses esforços iniciais, hoje o porco Moura é mantido em outras instituições públicas e privadas e por criadores rurais, e não corre mais o risco de extinção.
“O Moura está sendo redescoberto pelos chefs, que foram treinados para um tipo de carne de porco que é muito diferente dessa. As próprias receitas têm que ser repensadas. É uma carne com muitas possibilidades, com mais gordura e sabor”, conta Warpechowski. O professor explica que, enquanto isso, o número de criadores está crescendo e se qualificando para promover um modelo de suinocultura tradicional, usando recursos locais, mas que seja diferenciada. “Cada criador tem suas características regionais que vão dar diferença à carne”, complementa.
Gastronomia regional
O chef paranaense Lênin Palhano, que comanda o Nomade, em Curitiba, e um dos Chefs 5 Estrelas do Prêmio Bom Gourmet 2018, é um dos entusiastas do porco Moura. A linguiça de porco Moura é um dos itens de charcutaria artesanal fixos de seu cardápio. “É um trabalho de resgate do Moura que conversa com o passado, mas visa ao futuro. Nos últimos 50 anos nos ditaram coisas que a gente está vendo que não é o caminho, que é essa massificação da alimentação, em que tudo é industrializado. Queremos mostrar outras possibilidades de alimentação”, diz Palhano.
Entre os usos gastronômicos do Moura pelo estado se destacam preparos típicos da região dos Campos Gerais do Paraná, como o pão no bafo, a quirera com costelinha, embutidos e curados. Tudo feito de maneira natural, sem aditivos químicos. Aliado ao sabor complexo, há ainda a busca pela valorização do produto regional. “Por trás desse animal tem muitas pessoas envolvidas, histórias. É um produto com foco no desenvolvimento turístico também – um turismo com uma relação artesanal, que fale do processo do campo”, ressalta.
LEIA TAMBÉM: