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Produtos & Ingredientes

Entenda por que os pães de fermentação lenta viraram mania nacional

Stephanie D’Ornelas, especial para Bom Gourmet
09/04/2018 12:00
“Aqui solo corre el viento”. A placa com os dizeres em espanhol aponta para uma padaria em que o pão é feito sem pressa, de um dia para outro, como em épocas remotas. A receita usada ali é simples e universal: água, farinha e sal. Mas o segredo dos pães de miolo macio, casca robusta e aroma marcante é o principal ingrediente da casa: o tempo. O simpático imóvel de aspecto rústico abriga a Panoteca, “padaria lenta” comandada pelo uruguaio Oscar Pablo Luzardo e sua sócia e esposa Claudine de Sá Botelho.
O trabalho deles, como a de várias outras padarias abertas recentemente em Curitiba, vai além do fornecimento do alimento para os clientes. O que os move é o objetivo de difundir a cultura do pão de fermentação lenta. “Queremos resgatar o sabor e a qualidade que o pão perdeu ao longo do século 20, com a industrialização. O tempo do processo de fermentação foi diminuindo, e isso fez com que a qualidade do pão caísse tremendamente”, diz Luzardo.
A recente onda de pães de fermentação lenta que tem conquistado adeptos pelo Brasil e em todo o mundo, é, na realidade, o resgate de uma tradição ancestral. Estudiosos acreditam que o processo de fermentação natural foi descoberto há milhares de anos, provavelmente ao acaso. Uma massa de água e farinha esquecida em cima de uma pedra é suficiente para que os micro-organismos presentes no ar fermentem a massa.
O ponto ideal para fazer o pão é quando essa isca de fermento natural — conhecido também como levain (fermento em francês), sourdough starter (inglês), masa madre (espanhol) e massa lêveda — atinge sua maturidade, o que acontece após uma semana, em média.
Foi só no final do século 19 que começaram a ser produzidos e comercializados os primeiros fermentos biológicos industriais — conhecidos como fermento de padeiro, que hoje podem ser comprados em tabletes em supermercados. Esses fermentos possibilitam o rápido crescimento do pão e encaixaram o alimento na lógica de “tempo é dinheiro” da indústria. A receita que era feita em casa e em pequenas padarias passou a ser produzida em larga escala e de maneira padronizada pelo mercado.
Se por um lado a sociedade ganhou com a queda do preço do alimento, teve como contrapartida um pão padronizado e menos saboroso. “Como regra geral, podemos dizer que pães fermentados por poucas horas terão um perfil de sabor menos intenso e complexo”, explica Luzardo em seu livro “Panifesto”, publicado no ano passado. “Dentro dos caminhos para devolver o sabor perdido do pão, encontram-se os processos mais demorados, indiretos, em que o tempo de fermentação permite que o pão adquira sabor, maciez diferenciada, durabilidade e um índice glicêmico menor em comparação a um pão feito rapidamente”, diz.

Um fermento para cada objetivo

Fermento químico

Utilizado principalmente em bolos e biscoitos, o fermento químico tem ação rápida porque tem a capacidade de expandir a massa pela simples reação ao calor e umidade.

Fermento biológico

O fermento biológico foi criado a partir do isolamento da levedura responsável pelo crescimento da massa. Com ele, o pão pode ser feito mais rapidamente. Como a massa não adquire a maciez, durabilidade e o sabor intrínseco da longa fermentação, a indústria passou a inserir aditivos químicos e ingredientes extras que eram reservados aos pães festivos, como açúcar e gordura, para tornar o alimento mais palatável. O fermento biológico industrial, entretanto, também pode ser usado em fermentações longas, inclusive mesclado ao natural.

Fermento natural

Tanto no fermento biológico como no natural, micro-organismos realizam a fermentação. A diferença é que os últimos, além de leveduras, contêm lactobacilos, que conferem sabores e aromas que as leveduras não conseguem desenvolver sozinhas. Esse processo produz a acidez característica desse tipo de pão. “Se você alonga o tempo de fermentação, tanto com fermento natural quanto com biológico, você vai obter um pão muito melhor. Mas, com a fermentação natural, você vai atingir um nível de qualidade e sabor bem melhor do que conseguiria só com o fermento biológico”, destaca Luzardo.

Opção mais saudável

A busca por um produto mais natural foi o que motivou Pedro Henry Robell a criar a Casa Robell, que fornece pães de fermentação natural para diversos restaurantes e estabelecimentos de Curitiba desde 2005. “Eu queria fazer um produto que não tivesse nenhum produto químico, como era feito antigamente, por isso 100% dos meus pães são basicamente farinha, água, fermento e sal. São pães saudáveis. Pegue qualquer pão em um supermercado e você vai ver que tem produto químico, conservante, um monte de coisa, e os pães de fermentação natural não têm. Porque o fermento natural é meio “milagroso”. Ele faz o papel anti-mofo, ele é também um conservante”, afirma.
O pão de fermentação longa promove uma digestão mais fácil e, segundo os panificadores, tem índice glicêmico menor em comparação aos pães feitos mais rapidamente. Durante a fermentação, leveduras presentes no ambiente se alimentam do amido da farinha, realizando uma espécie de pré-digestão desse açúcar. A veloz fermentação moderna mantém a proteína do glúten intacta, dificultando a digestão pelo corpo.
“As pessoas comem pão há mais de dois mil anos e somente nos últimos dez que está todo mundo falando em glúten. Quando você deixa o pão fermentando por muitas horas, as enzimas, as bactérias, os micro-organismos fazem uma pré-digestão dessa cadeia gluteica. A indústria acelerou um processo de trinta horas para três. Além de não ter tempo de o pão desenvolver sabor, textura, aroma, o pão tem o glúten muito fresco ainda”, diz André Santi, da Fábrika Pães. Apesar de os pães de fermentação longa que contêm glúten não serem recomendados a celíacos, padeiros garantem que pessoas com níveis baixos de intolerância podem sentir menos — ou mesmo nenhum — desconforto comendo-os.

Por uma vida mais lenta

O prazer proporcionado pelo pão não está apenas no ato de comer, mas também em colocar a mão na massa. Fazer o próprio fermento, sovar a massa e conhecer o tempo do pão pode ser terapêutico. Foi também uma forma de Rene Eugenio Seifert Junior fazer novos amigos e descobrir uma nova maneira de vida em comunidade. Ele, que é professor de administração da UTFPR, começou a fazer seu próprio pão há nove anos, a princípio porque queria diminuir a compra de produtos com embalagem plástica. A calma da fabricação do pão de fermentação lenta mudou seu estilo de vida. Há quatro anos, ele resolveu fugir do ritmo frenético da cidade e se mudou para a campestre Colônia Witmarsum, município de Palmeira, no Paraná, com a família. Ele incentiva a economia colaborativa trocando seus pães por serviços de seus vizinhos, como o escambo por lenha ou por um corte do gramado de sua residência. O pão que fabrica alimenta assim o corpo e a alma, a partir das conexões que cria e dos amigos que faz.
“Estamos muito acostumados com a velocidade, e a fermentação ensina que o tempo traz sabor. A pressa é inimiga da refeição. Você precisa de tempo para cozinhar um ragu, uma carne de panela, e com o pão é a mesma coisa”, conta Rene. “O grande barato para mim é promover esse movimento de resgate do pão feito em casa, de ensinar e capacitar as pessoas para isso, e mostrar que o pão tem muito mais significado, e a gente precisa resgatar esse sentido: o de fazer amizades, de compartilhar, de desacelerar a vida”. O professor ministra um curso mensal em sua padaria artesanal, a Pão da Casa, em que ensina os processos da fermentação natural.
“Normalmente, quando eu dou curso aqui, as pessoas me perguntam quanto tempo elas têm que fermentar o pão. Eu digo assim: você fermenta até ele estar fermentado, e você vai se tornar o maestro desse processo. Para mim, 80% da panificação é aprender a experimentar a massa. A maior parte da história da panificação foi feita sem relógio e contagem mecânica do tempo. Foi só nos últimos dois séculos que a gente começou a contar mecanicamente. A gente se reconecta com a temperatura, com as diferentes estações. O pão ensina um monte de coisa para a gente, e essa é uma delas”, diz.

Preparação cuidadosa

Em geral, pães de fermentação lenta têm a casca mais grossa e um sabor mais ácido, o que pode ser controlado pelo padeiro de diversas formas, como explica Eduardo Freire, responsável pelos pães do Lucca Café Especiais. “Você pode controlar a acidez ao diminuir a quantidade de fermento do seu pão, mudar a maneira que você faz o seu fermento, a temperatura da água, a quantidade de farinha. Isso tudo interfere”, diz.
Um dos chamarizes da linha de pães de fermentação lenta do Lucca, segundo ele, é a alta hidratação. Freire, que se especializou em uma escola de panificação de São Francisco, nos Estados Unidos — considerada a nova “meca da panificação”. Aprendeu lá que, com a alta hidratação, o pão fica com o miolo mais aerado e com a casca mais fácil de mastigar. “Geralmente, nas receitas que levam 60%, 70% de água, eles colocaram 10% a 15% a mais. A casca fica fina e o miolo muito mais leve, com textura de goma; é bom para a digestão”, comenta.
Diz-se que um bom padeiro adapta o pão aos ingredientes que têm a sua disposição. Por muito tempo, o desejo de muitos cozinheiros era o de utilizar as melhores farinhas importadas. Hoje, há um grande movimento para o uso da farinha paranaense. A Panoteca, por exemplo, tem uma linha de pães que valoriza receitas de pães tradicionais do estado com o uso de farinha de trigo de outros grãos locais. Na Fábrika Pães, o uso de ingredientes regionais e sazonais é regra. “A gente tenta comprar direto do produtor, ter esse contato”, diz o proprietário André Santi.
Luzardo, da Panoteca, acredita que a farinha paranaense está passando por um momento de melhoria qualitativa, principalmente pelo trabalho de moinhos e produtores que conseguem rastrear o ingrediente desde a sua origem. Isso permite que os padeiros tenham um maior controle de todo o processo.

Além da farinha branca

O pão mais comum no mercado ocidental, o de forma, popularizou a farinha de trigo branca, também usada nos pães tradicionais de fast-food: o de hambúrguer e de hot dog. Mas essa nem sempre foi a farinha mais consumida. Antes da Revolução Industrial, a moagem era feita em moinhos de pedra, que trituravam o grão inteiro. Assim, obtinha-se a farinha integral, com as três partes do grão: o gérmen, o farelo, e a parte branca central (endosperma). A
farinha branca era obtida através do peneiramento, descartando o gérmen e o farelo, em um processo lento e caro. A invenção de moinhos de rolo metálico permitiu a produção dessa farinha de maneira mais barata, melhorando também o tempo de validade do produto — elementos que fizeram com que a indústria priorizasse seu uso. No movimento pelo resgate do pão de qualidade, os padeiros ampliam as possibilidades: usam grãos variados, farinhas integrais e mistas.
Em Curitiba, por exemplo, destaca-se a broa feita com a farinha integral de centeio, considerada Patrimônio Cultural Imaterial da cidade. A mais tradicional da capital paranaense é a da centenária Padaria América. Mesmo com o uso de fermento biológico, Eduardo Henrique Engelhardt, sócio-proprietário do estabelecimento, afirma que a fermentação da broa é lenta.
O Sindicato da Indústria de Panificação e Confeitaria do Paraná está, inclusive, incentivando as padarias do estado com cursos e especializações sobre fermentação natural. Mesmo o pão francês, o mais tradicional do país — e que é estrangeiro apenas no nome —, pode ser produzido a partir do método antigo. Para Vilson Felipe Borgmann, presidente do sindicato, o Paraná é hoje um dos estados mais desenvolvidos do país na produção do alimento milenar. “O pão do Paraná hoje está entre os melhores do Brasil. Uma das metas do sindicato é dar cursos para as padarias, para fazer pão francês e pão d’água com fermentação natural. Eu vejo que todas podem trabalhar com esse tipo de processo”, diz.

Pães para todos os gostos

Broa de milho, pão multigrãos, italiano, ciabatta, focaccia. É possível fazer um tour gastronômico pelos sabores desses e de outras dezenas de tipos de pães feitos com fermentação longa. A indicação dos especialistas para quem não está com o paladar acostumado aos pães de fermentação natural é começar pelos mais leves, como o italiano e outros pães de farinha branca. Quem procura sabores mais fortes pode partir para os pães com sementes e integrais, que deixam a massa naturalmente mais pesada e ácida. Em Curitiba, há padarias especializadas em fermentação lenta, como a Maçã, que tem dez pães totalmente orgânicos no cardápio (de R$ 15 a R$ 20 a unidade); a Fábrika, com seus doze tipos de pães fixos e fornadas diferentes a cada dia (de R$ 6 a R$ 16 a unidade e pães ao quilo) e a Panoteca, que tem cerca de vinte tipos de pão totalmente integrais (entre R$ 26 e R$ 30 o quilo).
Entre as padarias em que há opções de pães de fermentação biológica e natural destacam-se a Prestinaria, que oferece entre cinco a seis tipos de pães de fermentação natural diariamente (a partir de R$ 12,90 a unidade e baguetes a partir de R$ 5,90) e as centenárias Padaria América (a partir de R$ 27 o quilo) e a Piegel Pães (R$ 38,50 o quilo). A Padó, inaugurada em Curitiba no ano passado, chamou a atenção pela quantidade de pães no cardápio — ao todo somam 65 tipos. Boa parte deles, como os pães de centeio, de ervas e o de azeitona, são feitos com fermento natural (R$ 19 a R$ 22 a unidade). No Lucca Cafés Especiais, são oito tipos de pães no cardápio, incluindo a ciabatta e o country, típico dos Estados Unidos (R$ 35 o quilo).

Para conservar

Os pães de fermentação longa costumam durar entre quatro e cinco dias. A dica para conservá-los é mantê-los embrulhados no próprio pacote do pão ou em um pano. O padeiro André Santi, co-proprietário com Juliana Cerezuela da Fábrika Pães, sempre recomenda que seus clientes aqueçam o pão no forno ou na frigideira, com um pouco de azeite ou manteiga, antes de comer. Assim, ele vai ficar saboroso e com a crocância e maciez de um pão fresco.
*** Agradecimentos: as fotos da reportagem foram tiradas na Panoteca.

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