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Pratos com ingredientes típicos da América Latina.

Produtos & Ingredientes

Ingredientes típicos da América Latina são elevados ao patamar da alta gastronomia

Redação, com Guta Bolzan especial para o Bom Gourmet
06/09/2020 11:00
Quando pensamos na cozinha da América Latina, é impossível elencar um único ingrediente que represente todos os países. Do México ao Uruguai, a diversidade de biomas nesses mais de 19 mil quilômetros de extensão é tão presente que cada país dá pesos distintos a seus próprios grãos, vegetais e temperos. Sem falar na influência europeia. O continente latino-americano, que foi majoritariamente dominado por impérios espanhóis e portugueses, incorporou as influências estrangeiras, mas preservou sua base, essencialmente indígena.
Para a historiadora, mestre em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) e pesquisadora de hábitos alimentares, Adriana Salay, mesmo não sendo possível escolher um ingrediente símbolo, há um grupo importante usado nas cozinhas latinas, do México ao Uruguai. “Podemos falar do milho, dos feijões e da combinação de arroz com feijão, que também é tradicional em Cuba, mas consumido de forma diferente”, frisa Adriana. No caso cubano, a combinação do arroz branco com o feijão preto se chama "Moros y Cristianos," e lembra o baião de dois nordestino. Em ambas receitas, os grãos são cozidos juntos, e não separadamente, como costumamos comer no dia a dia.
Na ilha caribenha, também se capricha no tempero que finaliza o prato: alho frito, pimenta dedo-de-moça bem picadinha e coentro. Pode se utilizar, ou não, algum tipo de carne no feijão, geralmente, a de porco, assim como é costume no Brasil. Em Cuba, o prato é acompanhado por outro ingrediente onipresente na ilha e em países do entorno: a banana-da-terra frita. A fruta serve como petisco em países como o Peru, e é ainda o ingrediente principal dos patacones colombianos, que nada mais são do que banana frita, amassada e frita novamente. O disco crocante é versátil: pode servir como pão ou acompanhar carnes, camarão e frango.
Tanto a versão frita como a fruta in natura é bastante consumida nos países da América Central e no Brasil. Mesmo de origem asiática, a banana se adaptou bem ao clima da região: tanto que o Equador é o país que mais exporta a fruta no mundo.
O professor de gastronomia do Senac-PR, Alexandre Roberto Dhein, lembra ainda que, fora os alimentos típicos do continente, há uma miscelânea que proporciona uma riqueza única para a gastronomia latina, com as especiarias e frutas oriundas da Ásia, quiabo, maxixe, dendê e inhame africanos e o trigo europeu. “A gastronomia é um patrimônio cultural imaterial que incluiu também os ingredientes que são reflexo de uma região, cidade, estado ou país”.
Especialista em trabalhar com a gastronomia e pratos típicos de diversos países no dia a dia, a chef do Sale e Pepe, Mayara Ueda, acredita que, se pudesse escolher um único ingrediente que representasse a América Latina, elegeria o milho. “Ele é super democrático. Todos os países da América Latina o usam de alguma forma. Vai da entrada a sobremesa, passando pelo pão”, pontua. No Brasil, o milho é a matéria-prima de quitutes como a pamonha (cuja origem é indígena e aproveita o alimento de forma integral), a canjica e o curau. Subindo até o  México, o cereal é a base de pratos típicos como tacos, enchiladas, quesadillas e tortilhas.
Na Colômbia e Venezuela, as arepas também têm o milho como base: a massa, feita com o grão moído, é grelhada na chapa e consumida em diversas refeições pelos colombianos. “Na Colômbia, as arepas são o nosso orgulho em termos de comida. São comidas por toda a parte, toda hora, com toda a comida. Ela é o nosso pão” define a jornalista gastronômica e escritora Juliana Duque na série "Street Food", na Netflix  – a temporada mais recente é dedicada justamente à cozinha latina.
O país com maior variedade de milho do continente, porém, é o Peru: são 35 tipos diferentes. O consumo varia: desde o milho cozido, passando pelos grãos crus torrados até a chicha morada, refresco de milho roxo servido com especiarias. A bebida é vendida tanto por ambulantes nas ruas de Lima e Cusco quanto por restaurantes consagrados pela alta gastronomia, como os do chef Gastón Acurio.

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Mesmo com a inserção de receitas latinas como as arepas no Brasil, sobretudo pela imigração de venezuelanos ao país, talvez o prato típico latino unânime, acredita a chef Mayara Ueda, seja o guacamole mexicano. A iguaria é basicamente um purê de abacate temperado, que serve como uma salada. “Os nossos clientes adoram, é um dos pratos com mais saída no dia mexicano”, conta. O fruto, nativo do México, é consumido lá e em países como Cuba, Colômbia e Peru de forma salgada: uma fatia acompanha pratos do dia a dia e complementa sanduíches. No Brasil, o nosso hábito é consumi-lo de forma doce, com açúcar ou leite. Aos poucos, porém, o ingrediente se tornou mais popular também em preparos salgados, sobretudo por conta da incorporação do guacamole nos restaurantes, sejam típicos mexicanos ou não.
Outro prato que ganhou uma adaptação à brasileira, cita a chef, é o choripan. Tradicional na Argentina e Uruguai, o sanduíche leva o chorizo (linguiça) e é temperado com chimichurri, espécie de vinagrete picante que leva salsinha, alho, orégano, pimenta vermelha moída, entre outras ervas (cada chef, família ou churrasqueiro tem a sua combinação perfeita). É consumido como refeição rápida ou entrada nos assados. Por aqui, o pão com linguiça também tornou-se praticamente obrigatório nos dias de churrasco, mas o acompanhamento nem sempre é o molho de ervas, e sim o vinagrete (cebola e tomate picados).
 O argentino choripan caiu no gosto dos brasileiros. Foto: Letícia Akemi
O argentino choripan caiu no gosto dos brasileiros. Foto: Letícia Akemi

Vegetal protagonista

A cocção de vegetais é outra marca forte da gastronomia na América Latina, acredita a chef Ana Fogaça, que idealizou o menu do restaurante Mãe em 2019. A casa, aberta em novembro do mesmo ano por Ieda Godoy e Ane Adade, é uma homenagem ao filme “Tudo Sobre Minha Mãe”, do cineasta espanhol Pedro Almodóvar. Da estética da casa ao cardápio, além da óbvia inspiração espanhola, a chef passou a incorporar diversas receitas latinoamericanas e criações com ingredientes como a quinoa (Peru), o patacón (a banana verde frita), e cozidos que unem grãos e tubérculos.
“Tirando o Uruguai e a Argentina, que têm condições de criar um gado melhor, nas regiões mais andinas e acidentadas os vegetais são muito usados. A linhaça mesmo, que hoje é associada com comida saudável, já era usada em muitos países latinos, e é fundamental para receitas que exijam liga sem ovo. Acaba se trabalhando em cima do que se tem da terra. E é daí que vem toda a sapiência sobre culinária”, acredita a chef.
Além da banana-da-terra (que Anna utilizou em receitas como um sanduíche que une o patacón com carne de porco), a incorporação no cardápio do abacate, milho e de preparações clássicas como o Moros y Cristianos, de Cuba, ocorreu pela adaptação que o Mãe precisou fazer no menu por conta da pandemia. Com o atendimento presencial interrompido desde março, as sócias e a chef começaram a testar novidades, levando em conta o que o público queria e precisava.
“Foi aí que demos toda a liberdade para a Anna inventar e possibilitar que as pessoas saíssem da rotina”, relata Ane. Outra inclusão da chef no menu do Mãe foi o Suspiro Limeño, sobremesa peruana que une creme de limão, merengue e um toque de vinho do porto branco. “É uma receita que a princípio a gente pensa que vai ficar muito doce, mas a combinação de ingredientes é perfeita” garante Anna.
Valorizar os vegetais permite unir cultura alimentar, sustentabilidade e nutrição, crê a chef do Quintana, Gabriela Carvalho. Em seu ceviche de manga, por exemplo, a chef usa a fruta asiática em vez de peixe na receita tipicamente peruana, junto com milho branco e feijões. “A ideia é trazer uma variação livre de derivados animais, mas mostrar a riqueza das possibilidades dos feijões e leguminosas”.
A chef Anna Fogaça recorda de uma combinação simples que surpreende o paladar: batata doce assada ao modo rústico, acompanhada pelo tradicional molho chimichurri. “A sensação que você tem é a de estar comendo carne, sem comer”.
Gabriela, que costuma trabalhar com referências de diversos continentes no cotidiano do Quintana, a partir de mesas gastronômicas temáticas, fala sobre um prato mexicano ainda pouco popular no Brasil: frango crocante com molho de cacau. No prato, uma crosta de amendoim envolve o frango. A leguminosa usada pela chef é popular principalmente na Bolívia; uma das receitas afetivas mais conhecidas por lá é a sopa de maní, cujo preparo lembra a versão com feijões brasileiro, que une grãos e legumes.
Já o molho do frango é feito com cacau 100%, e traz um toque de amargor para o prato, que costuma ser a refeição principal em momentos festivos no México. Lembrando que, na América Latina, países como o Brasil e Peru são referência mundial no cultivo do cacau, matéria-prima principal do chocolate.
O reaproveitamento total dos alimentos é outro aprendizado, acredita Gabriela, da cozinha latina ancestral. “É uma prática nativa e natural, relacionada ao cuidado com aquilo que se tem. Não faz sentido utilizar parte de um ingrediente e jogar o resto fora”, aponta. No restaurante, a chef prepara um peixe com banana servido vai na folha de bananeira, aplicando a lógica de aproveitamento total.

Gastrodiplomacia

Entre os países da América Latina, a pesquisadora Adriana Salay destaca o México e o Peru como lugares que conseguiram criar uma identidade unificada na cozinha. “No Brasil, não tem como falar de uma só cozinha. O México construiu isso, o que deu uma projeção internacional bem representativa ao país”. Na lista de 2020 dos 50 melhores restaurantes do mundo, o México ficou em 11° com o Quintonil, na Cidade do México, comandado por Alejandra Flores e Jorge Vallejo, que expressam no menu os sabores dos ingredientes nacionais com um olhar autoral.  No cardápio, a casa serve o “mole”, tradicional molho de Oxaca, feito com especiarias), tacos e outros clássicos do país.
Adriana enfatiza que o Peru é o melhor exemplo de país que conseguiu formar a chamada gastrodiplomacia, conceito que define países que construíram um projeto político em torno da gastronomia. Por lá, esse mérito é concedido sobretudo ao chef Gastón Acurio. O dono de restaurantes como o Astrid & Gastón, em Lima, e o Chicha, em Cusco, é considerado uma espécie de porta-voz da cozinha peruana. “Ele conseguiu uma articulação em torno da gastronomia. No Brasil, temos o futebol como uma paixão nacional e única. No Peru, eles fizeram isso em torno da cozinha, o que tem gerado uma revolução enorme naquele país”, ressalta a pesquisadora.
A valorização de ingredientes locais na alta gastronomia já é uma tendência mundial, e deve se fortalecer, a exemplo do que se faz na América Latina, crê Adriana Salay. “É a possibilidade de apresentar o que tenho de forma diferente ao mundo”.
Frango com amendoim e "mole poblano".
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