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Produtos & Ingredientes

Defumação de alimentos: o guia completo para você fazer em casa

Andre Bezerra, especial para o Bom Gourmet
11/06/2019 12:00
Se alguém achava que o fogo não poderia ser redescoberto, eis que a gastronomia prova o contrário. Isso
acontece através da união da tradição dos povos indígenas e tropeiros com a tecnologia, o conhecimento
dos chefs e cozinheiros e o estudo de novas técnicas e métodos.
Carnes, peixes, legumes,<br>frutas e até sopas ganham<br>novo sabor com a técnica. Foto: Alexandre Mazzo / Gazeta do Povo.
Carnes, peixes, legumes,
frutas e até sopas ganham
novo sabor com a técnica. Foto: Alexandre Mazzo / Gazeta do Povo.
Há mais de 2 milhões de anos a.C., o homem ancestral lutava pela sobrevivência da espécie. Vivíamos na
Idade da Pedra Lascada. Aquela nossa mania primata de dar com uma pedra na outra para esculpir armas e ferramentas de trabalho resultou na  descoberta do fogo. Esse acaso providencial mudaria tudo, inclusive a nossa relação com a comida.
A história da humanidade avançou, domesticamos outras espécies animais, descobrimos novas civilizações, passamos a guerrear pela conquista de territórios, vieram os povos nômades. Diante da necessidade de nos alimentarmos enquanto errávamos pelo mundo sobre o lombo de animais, surgiu a técnica da defumação. No princípio somente para conservar os alimentos, como acontece ainda hoje. Mas a gastronomia encontrou outra finalidade importante da defumação. Transformar o sabor de proteínas, legumes e frutas.
A defumação nada mais é do que a exposição de alguns tipos de alimentos à fumaça da queima de lenha ou serragem, com o objetivo de conservar ou modificar o seu sabor. Na gastronomia, os alimentos que costumam ser defumados são as carnes e alguns tipos de peixes. A partir de diversas técnicas, muitas delas improvisadas na cozinha, na churrasqueira ou mesmo no mato, hoje defumam-se também os legumes, as frutas e até o leite. Quanto mais gordura o alimento apresentar, maior será a retenção da fumaça.

Técnicas

Os métodos de defumação exigem três coisas: lenha, brasa e fumaça. Três também são as técnicas de defumação. A primeira delas é chamada “a frio”, embora a temperatura dentro do defumador seja próxima a 35° C. Nesse tipo de defumação, as fibras do alimento se contraem e ele não chega, necessariamente, a cozinhar, mas sim a desidratar. Por isso, é usada tanto para fins de conservação quanto para conferir sabor. Normalmente, utiliza-se a serragem de galhos e troncos, em especial de árvores frutíferas. Aqui, é preciso de mais tempo para que o alimento entre em cozimento.
Já a defumação “a quente” acontece a partir de 65° C. Nessa condição, as fibras do alimento dilatam-
se, fazendo com que fique mais macio conforme assa. Para essa técnica, geralmente é a lenha que alimenta a brasa. E a defumação “a morno” é a que utiliza temperatura entre 35° C e 65° C.
Muitos são os métodos usados para a defumação de alimentos. Os povos indígenas do Paraná costumavam defumar os produtos da pesca e da caça utilizando lenha nativa, para conservação. Método semelhante era utilizado pelos tropeiros. Marcelo Empinotti, da Salumeria Monte Bello, conta que eles organizavam o processo de conservação de formas distintas de acordo com a durabilidade desejada e a defumação era a que melhor preservava a comida. Com as tribos indígenas e os tropeiros descobrimos que podemos conservar e até transformar o sabor dos alimentos, conferindo um importante capítulo à ciência conhecida como gastronomia. Hoje, técnicas desses dois povos influenciam nossos cozinheiros.

As “tribos” de chefs e cozinheiros

A gastronomia é uma ciência em constante transformação. É revigorante constatar que o resgate é um meio importante para mudar e até renascer. Alexandre Bressanelli, que é professor de gastronomia no Centro Europeu há 20 anos, proprietário do restaurante Sanatório, em Cascavel, e da Toledo Gourmet, escola de gastronomia, em Toledo, comentou sobre o assunto. “O Paraná é um estado de gente que veio do campo. Estamos constantemente resgatando receitas e métodos da nonna.”
Lênin Palhano defumou a batata, base do prato que é uma das entradas veganas de seu restaurante. Foto: Alexandre Mazzo / Gazeta do Povo.
Lênin Palhano defumou a batata, base do prato que é uma das entradas veganas de seu restaurante. Foto: Alexandre Mazzo / Gazeta do Povo.
O chef Lênin Palhano, do Nomade, costuma dizer que a tecnologia precisa andar de mãos dadas com a tradição. Em outras palavras, de pouco ou de nada valem os equipamentos mais modernos se não forem utilizados junto com o conhecimento que vem do mundo acadêmico, da experiência do produtor e daquele caderno de receitas da vovó. A tecnologia é a plataforma para revisitar e implementar receitas, técnicas e métodos. Defumando legumes Lênin Palhano, questionado sobre a técnica da defumação na gastronomia, afirma que “a alta cozinha se apropria da pesquisa, inclusive de métodos ancestrais.” O chef criou um prato vegano que traz arroz basmati e cenoura no repolho com creme de castanha e batata
defumada finalizado com tomates e amêndoas laminadas. Ele ressalta a importância dos contrastes nas receitas: quente e frio, salgado e doce, macio e crocante. Nessa preparação, por exemplo, há o contraste da folha de repolho com a nota de defumado das batatas. “Vejo a defumação como mais uma camada
de sabor nas receitas. Tem que evitar, contudo, que o sabor defumado roube a cena e comprometa a harmonia.”
Para preparar o charuto vegano, a técnica utilizada é simples: uma forma com serragem umedecida, preferencialmente de madeira de árvore frutífera – pêssego, ameixa, amora, jabuticaba, – é levada à boca do fogão. As batatas vão para a forma já assadas e partidas ao meio, e ficam suspensas por uma grade para defumarem por, aproximadamente, 15 a 20 minutos. Depois, basta tirar a casca e processar
junto com o creme de castanha. O creme – quase uma espécie de purê – serve de base para o charuto com os tomates e as amêndoas laminadas.

Defumando queijos e frutas

Também adepto da defumação a frio, o chef Igor pensa como um engenheiro de projetos. Enquanto recebia o Bom Gourmet no restaurante que leva seu nome, Igor Marquesini desenhava esquemas de defumadores, churrasqueiras e pit smokers para nos fazer entender os diferentes tipos de equipamentos e processos de defumação. Ele redesenhou o esquema do primeiro defumador que criou e encomendou para uma metalúrgica, a partir de uma pequena churrasqueira do tipo Gengis-Khan.
O chef, que teve os primeiros contatos com a defumação preparando porco no restaurante Piccolo Lago, próximo ao Lago Magiore, na divisa da Itália com a Suíça, esclarece a relação dele com a defumação na cozinha do restaurante curitibano. “Minha intenção é que lembre um prato que passou por uma cozinha de casa, e não acentuar o sabor.”
Para a reportagem, ele apresentou uma salada de muçarela defumada com folhas e legumes tão delicada que arrancou suspiros do time presente na sessão de fotos. Ele também preparou o peixinho da horta com creme de guacamole defumado e camarão. Peixinho da horta é o nome de uma Panc (Planta Alimentícia Não Convencional) que se assemelha à sálvia. Foi batizada assim porque suas folhas remetem ao formato de um peixe. Para a receita, o chef Igor fez um tempurá com a folha. A técnica utilizada na muçarela e no guacamole foi a defumação a frio com lenha de cerejeira. A intenção é que o queijo não derreta, permanecendo fresco, e que o abacate não escureça.

Defumando leite e líquidos

Quando já trabalhava no grupo Victor, a chef Eva dos Santos preparou um bacalhau na brasa para um amigo do restaurateur Francisco “Chico” Urban, no Bar do Victor. Calhou desse amigo ser um jurado do Guia Michelin, que comentou com a Eva: “Você leva jeito com brasa, tem que trabalhar no melhor do mundo”. Assim, apadrinhada por Jacques Trefois, foi para o restaurante basco Asador Etxebarri, do estrelado chef Victor Arguinzoniz, cuja especialidade são receitas preparadas na brasa. Para sorte dos curitibanos, Eva voltou com uma longa bagagem preparando carnes, legumes, queijos e até sobremesas
na brasa.
Na criação de Rene Seifert, a tilápia defumada é servida sobre o pão artesanal com o ovo poché. Foto: Alexandre Mazzo / Gazeta do Povo.
Na criação de Rene Seifert, a tilápia defumada é servida sobre o pão artesanal com o ovo poché. Foto: Alexandre Mazzo / Gazeta do Povo.
A chef conta que as pessoas em Curitiba associam defumados com bacon e que, por isso, não entendiam as receitas que trouxe. Ela viu-se obrigada a reduzir o número de opções de pratos com produtos assados na brasa e com defumados. “Mantivemos os mais clássicos”, conta.
Para a matéria do Bom Gourmet, Eva apresentou duas sopas. Uma delas, chamada de “Mar Em Fúria” foi inspirada na zarzuela e leva frutos do mar sobre uma base com molho artesanal de tomate e especiarias. Já para a sopa “O Mar Está Para Peixe”, a chef se inspirou no cassoulet e colocou cogumelos, palmito, feijão branco e frutos do mar sobre uma base de creme de leite.
Na primeira receita, ela defumou os tomates e a base do molho dentro do forno à lenha, com madeira de bracatinga. Os demais ingredientes passaram pela brasa. Na segunda, ela defumou o creme de leite que, por ser mais gorduroso, pega o gosto da defumação rapidamente. Numa gamela dentro do forno com
lenha de bracatinga, levou cerca de 10 minutos. Os cogumelos e palmito também foram defumados. Os demais ingredientes passaram somente pela brasa, uma vez que pegam o gosto do defumado simplesmente ao mergulharem no creme base. Conselho da chef Eva para quem quiser fazer receitas com defumados em casa: cuidado para não exagerar, busque sempre o equilíbrio e a harmonia entre os ingredientes.

Defumando carnes

Em meados da década de 1980, Airton Empinotti começou com um resgate de produtos frescos e técnicas artesanais de cura e conservação dos alimentos. O filho dele, Marcelo, foi para Florença, na
Itália, se especializar em Cozinha Profissional. Envolveu-se com a cozinha toscana, conhecida por sua característica “selvagem”.
Voltou da Itália após 12 anos estudando e trabalhando com gastronomia. Foi direto para a chácara da família, em Quatro Barras (PR), onde hoje está a Salumeria Monte Bello. Segundo Marcelo, “o teor de umidade elevado e a temperatura da Serra do Mar são ideais para o processo de conservação natural.”
Um bom exemplo é o método de retirada da umidade do mate para fins de conservação, conhecido como
barbaquá, muito semelhante ao processo de defumação. Aliás, segundo Empinotti e a esposa, Lai, os indígenas fizeram o método chegar até as tribos nos Estados Unidos, e o termo barbaquá originou a palavra barbecue (churrasco em inglês).
Para a matéria do Bom Gourmet, a Salumeria Monte Bello montou uma tábua de defumados com salsichas vinawurst, linguiça húngara, eisbein, bacon, costela e carré. A pancetta defumada de porco Moura foi a que passou pelo processo mais complexo de defumação: em cura de salga seca por uma semana, fumaça quente por 4 horas, repouso a frio e maturação em câmara a 15° C e umidade 80% por 3 meses.
Verdadeiro expert nos temas de cura, defumação e maturação, Marcelo dá algumas dicas fundamentais,
para se tomar nota e não Na carne defumada é possível observar os smoked rings. esquecer. A começar pela diferença entre os termos. Cura é o processo inicial, de “salva” do alimento. Ela é feita com sal e açúcar com o objetivo de retirar o excesso de água, já que é nesse ambiente que as bactérias se criam.
Em seguida vem a defumação. Quando se trata de proteína animal, a orientação é defumar em uma proporção inversa ao volume de gordura da proteína. Ou seja, quanto mais gordura, mais a frio será a defumação indicada e vice-versa. Em se tratando de frutas e legumes, sempre será utilizado o processo de defumação a frio. O mesmo com leites e derivados, assim como grãos e pimentas.
Finalmente, o conceito de maturação está relacionado ao tempo, daí seu nome. Processos de maturação podem durar de 6 a 8 meses e são realizados com objetivos específicos, geralmente para peças maiores, como o lombo. Essas peças podem receber defumação alternada, sendo defumadas a quente, alternando para a frio e voltando para quente. O objetivo é que a defumação penetre nas entranhas ou fibras. A defumação a quente feita por pouco tempo terá efeito mais externo. Quanto mais tempo alternando, diminui volume, desidrata a peça e penetra mais, aumentando o período de conservação.
Também apaixonado por gastronomia, o gaúcho André Montejorge abriu mão da carreira de 30 anos com publicidade para estabelecer outro negócio próprio. Depois de viajar pela região mais rústica do Texas conhecendo a cultura e segredos do american barbecue, Montejorge se uniu ao amigo e antigo cliente Gustavo Haas e abriram a BrisketSmokehouse. A especialidade da casa é o brisket, ou ponta de peito bovino, mas há muitos outros cortes defumados ao estilo American BBQ.
Para ele, “o churrasco americano chega como uma bela alternativa para os brasileiros, apreciadores de carne e da cultura do bom churrasco. O processo de defumação pode tanto acentuar como transformar o sabor. Além disso, modifica as propriedades, conferindo maior maciez e, dependendo da forma de finalização, mais suculência”.
O processo de defumação das carnes é feito na pit smoker, um defumador típico do churrasco americano que usa como base para a fumaça lenhas de árvores frutíferas, principalmente macieira e pecan. A técnica é de defumação lenta: as costelinhas suínas, por exemplo, ficam até 8 horas na brasa; a sobrepaleta, cerca de 4 horas.
Outro adepto do churrasco americano, o empresário Edson Barros, da KF Carnes, escalou o amigo Carlos Fogo, do Gas American Food, para treinar um time especial da KF Eventos e passou a oferecer a opção de American Barbecue aos clientes. Uma carreta com duplo eixo leva uma churrasqueira pit smoker de seis metros de comprimento e capacidade para assar uma tonelada de carne. As receitas de churrasco americano são preparadas com o processo de defumação a quente, sob temperaturas entre 90° C e 120° C.
Sobre a técnica utilizada no preparo do churrasco americano, Carlos Fogo esclarece que é chamada como low and slow (baixo e lento). É feita com lenhas frutíferas e não resinosas e tem o objetivo de deixar a carne macia. Com relação ao tempo, carnes suínas levam de 4 a 6 horas para ficarem prontas, sendo que a defumação, em si, leva a metade deste tempo, de 2 a 3 horas. O restante acontece dentro do papel alumínio para que as fibras e o colágeno da carne se soltem. Nos casos de carnes bovinas, o tempo total sobe para 8 a 12 horas, sendo que o tempo da defumação também é a metade. Passadas 4 a 6 horas defumando, repete-se o processo do papel alumínio.
Ele também falou sobre os chamados, smoked rings, ou anéis de fumaça. A ação da fumaça faz com que a hemoglobina comece a “morrer”, resultando num anel de fumaça na carne. Esse efeito está relacionado ao volume de fumaça e temperatura interna da carne. “Para nós, churrasqueiros, é como se os smoked rings fossem um troféu. Eles demonstram que aquela peça passou por um bom processo de defumação. O resultado é meramente estético, não altera no sabor e, quanto maior o anel, mais bem sucedido foi o processo”.
O nosso paladar é, dentre todos os cinco, o sentido que desencadeia maior número de conexões. Ele é capaz de absorver as “camadas” de sabor contidas em cada receita, como bem destacou o chef Lênin Palhano. E há muito mais informação a ser saboreada em meio aos contrastes de doce, salgado, ácido, azedo, quente, frio e tantas nuances de textura e temperatura, por mais subliminares que sejam. A defumação, quando bem aplicada, pode modificar e melhorar o sabor do alimento. O contrário também se dá, quando mal aplicada. O que não acontece é a defumação passar despercebida. Se bem sucedida, encanta o paladar e pode até saltar aos olhos, em forma de anéis de fumaça.
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