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Produtos & Ingredientes

Como a nova cozinha coreana do Brasil conquistou o Guia Michelin

Marina Mori
16/10/2019 21:00
A cozinha coreana está em alta e não é preciso ir longe para reunir provas. Pense no kimchi, por exemplo. Se há pouco mais de três anos a palavra estrangeira não representava muita coisa para um brasileiro, hoje sua pronúncia ligeira vem carregada do aroma intenso, fermentado e picante da conserva de acelga que acompanha quase todos os pratos desta cultura oriental.
Kimchi, a conserva fermentada de vegetais, geralmente de acelga, que se tornou o símbolo da coreana no Brasil. Foto: Divulgação / Restaurante Komah
Kimchi, a conserva fermentada de vegetais, geralmente de acelga, que se tornou o símbolo da coreana no Brasil. Foto: Divulgação / Restaurante Komah
Um movimento similar aconteceu com a cozinha japonesa em anos anteriores. Na década de 1980, sushis, sashimis e yakisobas eram o kimchi, o bibimbap, o bulgogi de hoje. De tanto falar neles, o estranhamento deu lugar a uma curiosidade crescente.
Até chegarmos ao cenário atual, onde fatias de peixe cru e enrolados de gohan em alga nori conquistaram um espaço de honra nas churrascarias brasileiras – mesmo que às vezes combinados com cream cheese, goiabada e morango.
Mas os sabores coreanos ainda não foram totalmente decifrados. Faz pouco tempo afinal que os pratos coloridos e, com frequência, picantes saíram de redutos para chegar a um público que não fosse apenas de imigrantes orientais. O jovem chef paulista com ascendência coreana Paulo Shin é um dos responsáveis por esta mudança.
Em meados de 2016, abriu as portas do Komah na Barra Funda, em São Paulo. Bem longe do circuito dos restaurantes típicos do bairro Bom Retiro, onde os primeiros imigrantes coreanos se instalaram há mais de 50 anos. Ao longo de três anos, Shin já tem no currículo prêmios que vão do “Melhor restaurante asiático” (Folha de S. Paulo 2018) ao “Chef revelação” (Veja Comer & Beber 2018/2019). Neste ano, entrou para o Bib Gourmand do Guia Michelin, uma seleção de estabelecimentos com bom custo benefício. E casa cheia, claro.
Com uma sofisticação singular, Paulo Shin mostrou aos paulistas os pratos que aprendeu desde cedo com a mãe, dona Myung. Do bibimbap, a tigela de ferro servida quentíssima com bap (o arroz), legumes, pedaços finos de carne e gema – tudo misturado na hora de servir com ajuda dos jotgarak, os “hashis” coreanos – ao yukhoe, o impressionante tartare de carne semi-congelada com pera asiática, ambas em tiras, servido com gema curada.
“Apresentei uma comida coreana mais acessível, tanto na potência da pimenta, que é uma das características da comida coreana, quanto no serviço. Se você vier no nosso restaurante e não souber como se come comida coreana, a gente vai gastar nossa energia para te ensinar”, garante o chef.
À mesa do banquete, o menu degustação do Komah, aprende-se que não há um prato para cada pessoa: todos compartilham o banchan set, as porções de acompanhamentos e conservas (que, além do kimchi, podem ser um punhado de manjubas crocantes, fatias de raiz de lótus com shoyu, cubos de tofu ou centenas de outras opções) e o prato principal.
As refeições coreanas são feitas para compartilhar. Foto: Reprodução / Instagram Komah Restaurante
As refeições coreanas são feitas para compartilhar. Foto: Reprodução / Instagram Komah Restaurante

“Hoje as pessoas falam kimchi antes de falar cachorro”

Quem vê o crescimento do Komah, que começou com 16 lugares e hoje tem o dobro, nem imagina que Shin nunca quis fazer para os outros a comida que aprendeu a comer em casa desde criança. “Quando fiz faculdade de gastronomia há 14 anos, eu perguntava para as pessoas qual era a referência delas de comida coreana e a resposta era sempre ‘cachorro’. Na televisão, durante a Copa [em 2002], todo o tipo de coisa que aparecia sobre comida era relacionada a cachorro. Era uma visão muito limitada”.
O preconceito fora de contexto (faz tempo que as novas gerações coreanas não replicam o antigo hábito) era tão desgastante que o cozinheiro construiu uma carreira na direção oposta às suas origens. Depois de trabalhar como discípulo de Alex Atala, no D.O.M, passou uma temporada fora do Brasil; dominou as técnicas francesas, a intensidade italiana, a ginga contemporânea nova iorquina.
Então olhou para Dave Chang, o chef americano com ascendência coreana à frente do Grupo Momofuku, e percebeu que poderia, sim, mesclar o rigor de uma cozinha meticulosa com os sabores ancestrais da Coreia do Sul sem passar perto de qualquer referência ao hábito controverso.
“Ele foi o grande pioneiro nessa questão de apresentar essa gastronomia ao mundo. O restaurante dele não é coreano, mas pelo fato de ele ser descendente e estar à frente de um lugar tão renomado, usando ingredientes que deixaram em evidência esse tipo de sabor, surgiu uma curiosidade. Hoje as pessoas falam kimchi antes de falar cachorro”, diz Shin.

Cozinha coreana com tempero brasileiro

Supernova Sandwich, sanduíche de mignon suíno com cebola roxa e molho de tamarindo do Cosmo Gastrobar. Foto: Letícia Akemi / Gazeta do Povo
Supernova Sandwich, sanduíche de mignon suíno com cebola roxa e molho de tamarindo do Cosmo Gastrobar. Foto: Letícia Akemi / Gazeta do Povo
Nem sempre é fácil conquistar um paladar (como o brasileiro) não tão acostumado com combinações agridoces e algumas outras inéditas. “As pessoas torcem o nariz e acham que tudo é extremamente picante ou fora do comum quando se trata de comida coreana”, diz Thiago de Lima, proprietário do badalado Bao Bar, em São Paulo. O chef apostou em uma solução simples para o desafio: misturar ingredientes já conhecidos do paladar brasileiro com elementos da cozinha coreana.
No recheio do bao — pãozinho asiático branco e fofo feito com farinha, água e açúcar — ele usa apenas carne seca ou mistura o kimchi com pernil, em vez de barriga de porco. “O pernil é extremamente atraente para os brasileiros, já que a barriga de porco ainda tem um pouco de resistência”.
Até mesmo o frango empanado na farinha Panko, típica das frituras orientais, ganha um toque tropical. “Usamos chimichurri, pimenta do reino e cheiro verde, enquanto por lá [na Coreia do Sul], eles usariam mais gengibre e páprica”.
No Cosmos Gastrobar, em Curitiba, os sabores também se complementam. O Supernova Sandwich ilustra bem a fusão do Brasil com a Coreia: no pão francês, o mignon suíno marinado em molho de ostra e outros temperos asiáticos com tamarindo é servido com queijo, cebola roxa e kimchi.
Em agosto, Daniel Lee, o mestre churrasqueiro à frente do Pitmasters Brasil, apresentou o churrasco coreano para quase quatro mil pessoas em um evento da VPJ Alimentos, a Churrascada da VPJ, em São Paulo. “O bulgogi é feito com qualquer tipo de corte bovino em fatias bem finas temperado com uma marinada agridoce de shoyu, açúcar, óleo de gergelim e melaço de cana. Às vezes, até mesmo refrigerante”, explica.
O momento, segundo ele, é ideal para que o brasileiro se permita provar o que é diferente. “Aos poucos, as pessoas estão se livrando do preconceito para testar coisas novas. Se antes o churrasco era temperado somente com sal, agora pode ser feito de outras formas. É o timing perfeito”. Não apenas para este tipo de preparo.

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