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O sumiço do berbigão, molusco que é identidade de Florianópolis

Aline Torres, de Florianópolis, especial para Bom Gourmet
26/03/2019 20:00
Os sambaquis de Florianópolis são prova de que há cinco mil anos os povos originários se alimentavam de berbigão. Graças ao pequeno molusco os açorianos, que chegaram há mais de 270 anos, também sobreviveram na terra considerada hostil e batizada Desterro. Cozido e misturado aos temperos indígenas, ele transformou-se em parte da identidade da capital catarinense – e se mantém presente nas festas tradicionais, mesmo extinto há três anos.
Berbigão na moranga. Foto: Aline Torres
Berbigão na moranga. Foto: Aline Torres
Pesquisadores do ICMBio (Instituto Chico Mendes da Biodiversidade) entraram em alerta em 2015, quando foi registrada mortandade de 95% dos moluscos em uma área de 17 hectares na Baía Sul. Eles se regeneraram por alguns meses e padeceram novamente. Em abril de 2016 foram classificados como extintos pela Resex, que é a primeira reserva extrativista marinha do Brasil, criada em 1992, no Pirajubaé, localizado na Baía Sul, perto do Aeroporto Hercílio Luz.
Apesar das investigações, os laudos sobre o sumiço do berbigão em Florianópolis foram inconclusivos. Múltiplos fatores foram detectados nas análises como poluição, mudança da temperatura marítima, excesso de chuvas, avanço da construção civil e extração clandestina.
Os extrativistas usam o gancho, uma gaiola de ferro presa a um cabo de madeira, que cravam na lama e puxam o molusco. Porém, há denúncias de retirada com retroescavadeira.
Foto: Aline Torres
Foto: Aline Torres
Atualmente tem um pouco de berbigão na praia da Daniela, na Costeira do Pirajubaé e no Ribeirão da Ilha, em Florianópolis. Mas a quantidade é tão insignificante que não abastece o mercado. Para protagonizar festas tradicionais da cidade, reavivar a memória ou saciar a curiosidade, ele é comprado de outros municípios catarinenses como Palhoça, Porto Belo, Bombinhas e São Francisco do Sul. É retirado do lodo, areia preta da mistura com o mangue.
Esses municípios também vendem o berbigão para São Paulo, onde perde o nome dado pelos imigrantes açorianos e é batizado com o italiano vôngole. O batismo foi feito pelos imigrantes napolitanos, saudosos do marisco do Mediterrâneo, o venerupis decussata, parecido no gosto.
O nosso berbigão (anomalocardia brasiliana) povoa toda costa brasileira chamado de muitas maneiras. Chumbinho, bergão, conchinha, fuminho, fumo-de-rolo, maçunim, marisco-pedra, papa-fumo, marisquinho, samanguaiá, sapinhoá, sarnambi, sarnambitinga, sarro de pito.
Bem antes de ser extinto em Florianópolis, em 2010, o berbigão entrou para Arca do Gosto, projeto da Fundação Slow Food que procura salvaguardar alimentos ameaçados de extinção. Foi o primeiro ingrediente brasileiro de origem animal a entrar para lista. O alerta é importante já que não é possível criar berbigão em cativeiro.Apesar da escassez do molusco, as festas tradicionais de Florianópolis o mantém no cardápio. Uma semana antes do carnaval, o Berbigão do Boca proporciona doze horas de festa, com direito à bateria, rainha, mestre-sala e porta-bandeira, desfile de 39 bonecos gigantes representando personagens queridos para cidade e o concurso gastronômico.
Doze concorrentes têm duas horas para apresentar o prato mais saboroso, criativo e bonito. O júri técnico avalia, o popular só palpita, e é escolhido um vencedor. Nesse ano foi o risoto de da Lenir Santos de Souza e da Tânia Borges. Mas teve nhoque, coxinha e lambe-lambe.
As receitas do Berbigão do Boca de outros carnavais foram editadas em 2017 pelo Senac. O livro ensina a fazer 59 pratos. O berbigão deixou seu lugar nas mesas, para entrar para história.
No Berbigão do Boca também ocorre a simbólica transferência da chave da cidade das mãos do prefeito para o rei momo. Ela é devolvida em outro evento que faz parte do calendário manezinho e que também tem o berbigão como estrela. É o Ricaldinho da Ilha, quando Ricardo Machado, uma personalidade de Florianópolis, celebra seu aniversário e o da cidade, no dia 23 de março, com vários tipos de caldos – tendo como carro-chefe o de berbigão.
O pastel de berbigão também é um clássico e é vendido no Box 32, do Mercado Público, e no Alvim, no Calçadão da João Pinto, 30. O ingrediente que foi essencial para sobrevivência dos imigrantes em Desterro, com o passar dos anos e o risco de extinção ascendeu socialmente. No Mercado Público de Florianópolis o quilo custa atualmente R$ 50.
Concurso gastronômico Berbigão do Boca. Foto: Aline Torres
Concurso gastronômico Berbigão do Boca. Foto: Aline Torres