Bom Gourmet
Por que alguns dos bares mais tradicionais de Curitiba fecharam suas portas?

Um dos mais antigos do Brasil, Bar Stuart segue com as portas fechadas desde dezembro de 2023, mas será reaberto em breve com novo dono. Crédito: Gabriel Faria
Quando pensamos na cultura de bares de Curitiba, logo algumas imagens vêm à cabeça: petiscos como o pão com bolinho e a Carne de Onça, os prédios históricos do centro da cidade e bebidas como o famoso submarino, que mistura chope e uma dose de destilado.
Estes elementos são tão representativos da cultura da local que a Carne de Onça se tornou um dos principais pratos típicos da cidade. Em maio deste ano, inclusive, foi reconhecida com o selo de Indicação Geográfica (IG), que vincula o produto ao seu local de origem por conta de características únicas que a região proporciona.
De certa forma, podemos dizer que a cultura de Curitiba anda lado a lado com a cultura dos bares. Como decretado pelo eterno poeta e boêmio Paulo Leminski: “O Rio é o mar. Curitiba é o Bar”.
Essa imagem, no entanto, não surgiu por acaso. Por anos, bares tradicionais lutaram para se manter abertos e, com isso, garantiram que petiscos como a Carne de Onça atravessassem gerações e se tornassem os ícones que são hoje. Mas agora, muitos destes lugares estão fechando as portas.
Nos últimos meses, a cidade se despediu do Kapelle e do Ligeirinho, duas casas que carregavam mais de meio século de tradição e infinitas histórias. De forma similar, o Bar Stuart, aberto desde 1904, fechou as portas em dezembro de 2023. Era o segundo bar mais antigo do Brasil, perdendo apenas para o Café Lamas, do Rio de Janeiro, inaugurado em 1874.
O Stuart teve sorte: foi adquirido pelo Grupo Mustang Sally e deve reabrir na primeira metade de 2026. O fim do Kapelle foi menos glorioso. Conforme apurado por O Centro De Curitiba, a mobília do bar foi arremessada na calçada da Rua Saldanha Marinho, na noite do dia 10 de setembro. As mesas, cadeiras e esculturas que adornavam a casa desde sua abertura, em 1974, amanheceram na sarjeta.
Para Dante Mendonça, jornalista e boêmio de carteirinha, o fechamento desses bares tradicionais está diretamente relacionado ao crescimento da cidade nas últimas décadas.
“A cidade mudou, mas esses bares não tinham por que mudar. Nos restaurantes, você não encontrava vinhos e whiskey. Foi a partir dos anos 1990 que isso começou a aparecer. A freguesia desses bares não admitia mudança, o cardápio sempre foi o mesmo”, explica.
De província à metrópole
“Nos anos 1970, Curitiba começava na Praça Osório e terminava no Passeio Público”, diz Mendonça. A afirmação é um exagero, mas ilustra bem as mudanças que a cidade enfrentou. Desde então, a cidade quase triplicou de tamanho: de 620 mil habitantes para os quase 1,8 milhão de hoje. O comércio, antes concentrado quase exclusivamente no Centro, agora se espalha por todas as regiões da metrópole.
Segundo o jornalista, a Curitiba dos anos 1970 era dividida em pequenas tribos urbanas, e cada uma adotou seu bar de estimação. O Kapelle era o frequentado por artistas de teatro, escritores, poetas e políticos ligados ao Movimento Democrático Brasileiro (MDB).
O Bar do Ligeirinho, inaugurado em 1998, carregava a tocha do Cinelândia, que funcionou nos anos 1950 e 1960. Ambos foram criações de Ronald Abrão, o Ligeirinho, que começou sua carreira como garçom do Stuart na década de 1940.
Ligeirinho servia os “boêmios profissionais” e “bebedores raiz”, conta Mendonça. Em suas casas, carregava a tradição de servir petiscos bizarros, como carne de jacaré, testículos de touro, sopa de tartaruga, rã à milanesa e porquinho da índia ao forno.
O Stuart atraia uma freguesia mais variada, pelo título de bar mais antigo do Paraná. Já era destino de turistas e curiosos que queriam provar a Carne de Onça de Curitiba.
“Minha tribo era dos jornalistas. Entrava na redação às 14h e saia às 2h da manhã. Íamos nos bares noturnos, como o Bar Palácio. No sábado, a gente ia no Stuart”, conta. “Paulo Leminski era da tribo dos publicitários. Saia às 17h da agência e ia para o Bife Sujo. Eram poucos grupos, mas eram grupos representativos”.
Com o crescimento, a cidade foi aos poucos perdendo seus ares provincianos. A partir dos anos 1990, começaram a aparecer lugares mais requintados, com cardápios e cartas de bebidas mais variados. Assim, as tribos foram se diluindo e os salões dos bares tradicionais começaram a esvaziar. Problemas administrativos se tornaram evidentes e as dívidas acumularam.
Um resgate da memória
Hoje, a valorização de petiscos de boteco como a Carne de Onça e o pão com bolinho tem despertado o interesse das novas gerações por estes bares. O fechamento das casas gerou comoção nas redes sociais, e muitos manifestaram sua tristeza.
Para o advogado André Thomazoni, que começou a frequentar o Kapelle quando era estudante, em 2010, foi o ambiente e a atmosfera do bar que o encantaram. “Era coisa de jovem, gostava de lá por essa mística de ser um lugar bem diferente. O público era mais velho, cheio de figuras emblemáticas. Eu gostava disso”, conta.
Quando soube que a mobília do Kapelle havia sido jogada na calçada, resolveu resgatar a famosa escultura da mulher nua, que adornava o teto da casa. Trouxe a peça para seu apartamento e, através do Instagram, encontrou uma restauradora que se dispôs a fazer reparos.
“Minha ideia era deixar a estátua em algum estabelecimento que tivesse afinidade com o Kapelle, mas só vou me preocupar com isso quando o restauro estiver pronto. Por enquanto, o destino está em aberto”, explica.
O futuro de um clássico
Foi um sentimento parecido que moveu o empresário Guga Griebeler, sócio-proprietário do Grupo Mustang Sally, a investir no Stuart. “O bar virou um patrimônio cultural da cidade, não podíamos deixar que fechasse. Queremos reabri-lo sem perder a essência, mas também revitalizado”, destaca.
O processo de compra, no entanto, não nada foi tranquilo. A ideia era adquirir o bar ainda em 2023, mas as extensas dívidas trabalhistas da casa tornaram isso impossível. Foi necessário esperar que as partes chegassem a um acordo na justiça, no começo deste ano, para finalizar o investimento.
"Não estávamos preparados par uma instabilidade tão grande. Estávamos acertando valores e começaram chegar ações. Depois que conseguiram encontrar um acordo, retomamos as negociações um ano e meio depois", conta.
O “novo” Stuart deve manter tudo aquilo que o tornou um ícone da boemia curitibana – o chope gelado, os petiscos clássicos e o ambiente que te leva a uma viagem no tempo –, mas também terá algumas mudanças.
“A ideia é trazer aquele almoço tradicional de boteco durante a semana, e sábado a feijoada. Vamos trazer opções de drinks e chopes artesanais também”, explica. “Queremos apresentar um bar saudosista, que tenha a chancela de 120 anos, mas que possa ser frequentado por qualquer geração”.
Enquanto bares modernos se destacam com trends e ambientes instagramáveis, os lugares tradicionais vão na contramão e têm chamado a atenção das pessoas justamente por sua história. Aquela boemia das décadas passadas pode não existir mais, mas isso não torna estes lugares obsoletos. O charme que os fez atravessar os anos perdura e, agora, mais do que nunca, é hora de voltar os olhos para eles. Afinal, podemos não ter muito mais tempo.