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Petiscos no varal ou em formato de travesseiro: conheça a chef que mudou a comida de boteco de Floripa

Juliana Gomes, de Florianópolis, especial para Gazeta do Povo
18/05/2018 18:35
Esqueça o que vem à cabeça quando o assunto é um chef de cozinha hoje. Na verdade, uma chef. A gaúcha Isabel Hagemann, que comanda o fogão do Boteco Zé Mané e do Beer and Pork, em Floripa, não passou por grandes restaurantes da Europa, não está preocupada em conquistar títulos, tampouco planeja aprender técnicas da gastronomia molecular. Muito pelo contrário. O objetivo da cozinheira é resgatar pratos típicos da Região Sul do Brasil e destacar ingredientes que correm o risco de entrar em extinção por falta de uso.
“Não me interessa fazer uma boa cozinha francesa. Eu tenho que focar na gastronomia brasileira. O bom cozinheiro é aquele que faz o ingrediente atingir a sua melhor forma”, defende Isabel. 
Varal de peixe escalado, feito com anchova que é seca na casa da própria chef. Foto: Divulgação
Varal de peixe escalado, feito com anchova que é seca na casa da própria chef. Foto: Divulgação
Isabel é tímida, não gosta de holofotes, e enxerga o sucesso dos estabelecimentos onde comanda a cozinha com muita humildade. Integrante do Movimento Slow Food e da Confraria Florianópolis Cidade Criativa UNESCO da Gastronomia, a chef dedica-se a criar petiscos com ingredientes regionais catarinenses, como a farinha de mandioca, o queijo colonial, linguiça blumenau e o butiá.

Foto: Divulgação
Suas criações podem ser degustadas no Zé Mané, que está longe de ser um boteco qualquer, desses conhecidos popularmente como “pés sujos”. Mas também não pode ser definido como um gastropub. No bar, que está sempre lotado, ela oferece uma grande variedade de quitutes inspirados na feijoada, moqueca, e na anchova escalada. No Beer em Pork, que também é fruto da sociedade com Leila Pinheiro e Angela Monguilhott, as estrelas são os petiscos com carne de porco e as 16 torneiras de chope artesanal.
O travesseiro é uma massa de mandioca recheada com berbigão, ingrediente típico de Floripa. Foto: Divulgação
O travesseiro é uma massa de mandioca recheada com berbigão, ingrediente típico de Floripa. Foto: Divulgação
De onde surgiu a carreira de cozinheira?
Eu e meu marido morávamos no interior do Rio Grande do Sul, em Estrela. A gente queria abrir um restaurante, numa pegada mais hippie, vender comida saudável. Mas eu não sabia cozinhar nada. Minha mãe não gostava de ir para a cozinha também. A gente contratou pessoas para trabalhar no restaurante, mas deu tudo errado. Ser cozinheiro não era visto como uma profissão e as pessoas não tinham muita experiência ou formação na área. Acabei me metendo, começando a cozinhar, e o restaurante durou 12 anos. E se tu for hoje em Estrela tu vais ver o pastel que eu fazia em todos os bares da cidade, que tinha uma formato grande, feito com massa artesanal. Acabei mudando para Floripa porque não tinha mais como crescer lá e a gente sempre quis mudar para o litoral. Trabalhei em vários lugares aqui e num restaurante japonês foi onde conheci a Angela e a Leila, hoje minhas sócias no Zé Mané e no Beer and Pork.
Bolinho de camarão na moranga do Boteco Zé Mané. Foto: Divulgação
E de onde surgiu a ideia de abrir um boteco?
A gente queria abrir um negócio nosso, um bar. Fomos discutindo o que a gente entendia como um boteco, o que que levava a gente a sair de casa e ir num bar. Fiz um roteiro por Minas Gerais pensando no que eu queria servir em Floripa… E o cardápio do Zé Mané hoje tem influência não só dos petiscos mineiros como de tudo o que eu vivi. E outra coisa que me motiva muito é pesquisar a nossa comida. Eu participo do Movimento Slow Food.
Como é a sua atuação dentro do Movimento Slow Food?
Eu faço parte do Convívio Mata Atlântica, que é formado por cozinheiros. O nosso propósito é valorizar a comida local e seguir as diretrizes do movimento, de servir uma comida boa, justa e limpa. Boa, de gostosa, limpa de não poluir o meio ambiente, e justa no sentido de toda cadeia ser bem remunerada. Isso é cortar os atravessadores, o que demanda muito trabalho. Eu tento, não consigo sempre, principalmente por causa das questões legais. Por exemplo: aqui em Floripa a gente não pode comprar peixe dos pescadores artesanais, tem muitos produtores que não emitem nota porque são pequenos, outros produtos a gente precisa ir buscar ou depender de alguém que traga. O Antônio, da cidade de Laguna, é quem traz o butiá para a gente. Ele traz e entrega para todo mundo do movimento. Funciona como uma rede, um coletivo. Outro amigo meu tem um sítio aqui em Floripa e também fornece alguns produtos, vegetais e o mel. Agora no inverno a gente inclui as sopas no cardápio. Aí, eu crio com base no que tem no sítio dele.
No Boteco Zé Mané as estrelas são os pratos típicos da culinária brasileira e regional. Foto: Divulgação
No Boteco Zé Mané as estrelas são os pratos típicos da culinária brasileira e regional. Foto: Divulgação
Você faz parte também de um projeto de resgate dos alimentos que estão em extinção, certo?
Sim, é o projeto Arca do Gosto. São produtos que estão em extinção por desuso, as pessoas esquecem de usar mesmo. Aqui em Santa Catarina a gente tem feito um trabalho de mapear esses produtos, como a farinha de mandioca polvilhada, que é feita a mão ali em Santo Antônio de Lisboa, o berbigão (um tipo de molusco), o butiá, o queijo diamante, o queijo serrano, o pinhão, o mel de abelha sem ferrão, a bijajica, que é um bolo que parece um cuscuz, só que é feito com mandioca ralada, amendoim e açúcar mascavo.
Você participa também da Confraria Florianópolis Cidade Criativa UNESCO da Gastronomia, né?
Sim, eu fui representar em Florianópolis há pouco tempo em um encontro em Belém do Pará. Precisava levar um prato e alguns produtos locais. Eu levei berbigão, queijos, licor de butiá, abrótea seca e salgada, conhecida como bacalhau catarinense. Mas usar esses produtos no dia a dia não é fácil porque não tem muita aceitação entre os clientes. Eu já tentei colocar vários pratos típicos aqui da região, que contam a nossa história, como o camarão com chuchu, e as pessoas não pedem, não tem saída. Mesmo assim eu insisto. Faço questão de oferecer o pirão com linguiça, que é outro prato típico, faço arroz de puta pobre, que é um arroz feito com linguiça blumenau.
Desses ingredientes que você citou, algum se destaca mais?
A farinha de mandioca. A mandioca é o produto mais importante da gastronomia brasileira. Ela está na casa de todo mundo sempre, mas ainda aparece pouco nos restaurantes. Tem esse negócio de que as pessoas não querem comer fora o que comem em casa, né? Mas a nossa tarefa é justamente essa, transformar o ingrediente comum em algo diferente. Ninguém sai de casa para comer arroz e feijão. Por isso, a nossa proposta aqui é justamente transformar os pratos regionais em comida de boteco. A gente tem bolinho de carreteiro, por exemplo, que a massa é de arroz, recheio de carne seca com bacon, empanada numa farofa de torresmo e com molho de erva mate. O conceito inteiro do gaúcho. A gente também faz o bolinho de camarão na moranga. A massa é de moranga, o recheio, de camarão, vai o catupiry junto. A mesma coisa com a coxinha de feijoada, que leva molho de laranja para formar a feijoada completa.
E que petisco seu tem mais a cara de Floripa?
Tem vários, mas eu destaco a anchova escalada, que está acabando. As pessoas acham que a anchova escalada é só um peixe aberto. Não é. É um peixe seco no sol. E eu faço isso aqui. Salgo o peixe e seco na minha casa, com dois dias de sol. A gente serve o peixe frito num varalzinho, para resgatar esse processo artesanal de secagem que faziam antigamente.
O que precisa ter num boteco?
Preços bons e comida boa. Muita gente vem aqui e reclama dos nossos copos, pede para tomar cerveja em taças. A nossa proposta não é essa. É tudo pensado para ter cara de boteco. A gente quer agradar as pessoas, mas também não podemos fugir da nossa proposta. A tendência agora também está nas cervejas artesanais, mas a gente não quer esse foco no Zé Mané. O nosso foco são as caipiras feitas com frutas locais, todas elas levam duas doses de bebidas, são grandes.
O que é tendência na gastronomia catarinense agora?
Vou falar no geral mesmo, na gastronomia brasileira como um todo. Antes a moda era fazer coisas inusitadas, o que ninguém tinha ouvido falar. Tinha aquela coisa dos chefs que estudaram fora, de fazer pratos que ninguém fazia ideia de que ingredientes tinham ali. Mas agora a tendência é o resgate dos ingredientes regionais e a valorização do que é nosso. Nisso o Alex Atala foi pioneiro. Esse é o caminho e para isso que a gente trabalha aqui em Santa Catarina. É muito triste os turistas virem para cá e comerem salmão. A gente tem um dos litorais mais extensos do mundo, com uma variedade gigante de peixes. Por que oferecer salmão? Mas um dos entraves é a questão de não podermos comprar os peixes dos pescadores artesanais. Precisamos mudar a legislação, assim como está acontecendo com os queijos de leite cru.
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